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Diálogo do CICV com grupos armados não estatais: por que e como

Em 2020, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) contabilizou 614 grupos armados de interesse para as operações humanitárias da organização no mundo todo. Como parte do seu trabalho humanitário imparcial, o CICV teve contato com cerca de três quartos desses grupos — independentemente dos países onde operam, da sua ideologia, religião, motivação ou qualquer outra característica.

O CICV publicou recentemente um documento de posicionamento no qual elabora as principais razões para o diálogo da organização com grupos armados, com foco em grupos armados não estatais que são partes de conflitos armados, e alguns dos desafios desse trabalho. Neste post, Jelena Pejic, assessora jurídica sênior do CICV, Irénée Herbet, chefe de Assuntos Globais e Grupos Armados Não Estatais, e Tilman Rodenhäuser, assessor jurídico do CICV, destacam algumas das conclusões do documento.

O diálogo humanitário com grupos armados — notadamente com os cerca de cem grupos armados não estatais que podem ser legalmente classificados como partes de conflitos armados não internacionais — tem sido uma característica definidora do trabalho do CICV. A nossa principal razão para isso é bastante direta: garantir assistência humanitária e proteção às pessoas afetadas por conflitos armados e outras situações de violência, em conformidade como o nosso mandato. Isso inclui prestar assistência vital a pessoas que vivem em áreas controladas por grupos armados, apoiar estabelecimentos de saúde que atendem pessoas doentes e feridas nessas áreas, ou fortalecer o conhecimento e o respeito dos grupos pelo marco jurídico aplicável.

À luz da devastação e do sofrimento causados por conflitos armados e outras situações de violência, e exacerbados por comportamentos contrários ao Direito Internacional Humanitário (DIH) e outros conjuntos de lei, o nosso diálogo com grupos armados é uma questão de necessidade humanitária.

Quatro razões para o diálogo do CICV com grupos armados

O diálogo com grupos armados é, em primeiro lugar, uma pré-condição para o acesso seguro do CICV a populações e pessoas afetadas por um conflito armado não internacional ou outras situações de violência. A triste realidade dos conflitos armados de hoje é que, com muita frequência, a população civil é diretamente atacada e morta, as suas casas e meios de subsistência são destruídos, pessoas sofrem com a fome e a falta de assistência médica, e crianças são deixadas sem educação e recrutadas para as forças de combate. As pessoas detidas são tratadas com severidade. Famílias são deslocadas ou separadas, incapazes de se conectarem entre si e com os seus entes queridos. A violência sexual é frequente. E a lista continua.

Dialogamos com todas as partes em conflitos armados, incluindo os grupos armados não estatais, para obter acesso a populações civis e pessoas localizadas em territórios onde esses grupos operam ou exercem controle, a fim de dar proteção e assistência às populações afetadas, de acordo com a nossa missão humanitária.

Em segundo lugar, o diálogo com todas as partes em um conflito, incluindo os grupos armados não estatais, é a única maneira de garantir que entendam e aceitem o CICV como uma organização humanitária neutra, independente e imparcial. Essa aceitação é a chave que nos permite acessar populações e pessoas que vivem em territórios controlados pelo grupo armado não estatal ou onde operam. É essencial permitir que a nossa equipe opere com segurança. Os grupos armados não estatais devem entender quem somos, o que fazemos e confiar que a nossa ação em favor das pessoas afetadas pelo conflito armado se baseia exclusivamente em preocupações humanitárias. A falta de compreensão, ou um mal-entendido em relação ao nosso trabalho, pode ter consequências diretas na segurança da nossa equipe.

Em terceiro lugar, o diálogo é um pré-requisito para promover o DIH e outros marcos jurídicos relevantes como meio de garantir o respeito à lei e, assim, prevenir/aliviar o sofrimento das vítimas de conflitos armados e outras situações de violência. Os nossos esforços para incentivar os grupos armados não estatais a melhorarem a sua observância da lei só podem ocorrer por meio de um diálogo de proteção adaptado e contínuo com esses grupos e aqueles que exercem influência sobre eles.

O relatório Roots of Restraint in War de 2018 elaborado pelo CICV identificou várias fontes de influência no comportamento do grupo armado não estatal. Vão desde a integração do DIH nas próprias normas e sistema disciplinar de um grupo, até a promoção de normas de DIH por meio de referência a crenças locais, assim como outras tradições, costumes e práticas jurídicas que encapsulam normas semelhantes de restrição, ou ajudam a transmitir um sentido de tal restrição por analogia com eles (ver aqui exemplos do trabalho do CICV sobre religião e princípios humanitários).

Finalmente, em quarto lugar, cabe lembrar que o CICV é a única organização humanitária imparcial explicitamente mencionada no Artigo 3º Comum das Convenções de Genebra de 1949 como um exemplo de organização que pode oferecer os seus serviços às partes de um conflito armado não internacional, incluindo não estatais.

Um registro comprovado de resultados tangíveis

A história do nosso diálogo com grupos armados não estatais em conflitos armados mostrou que o diálogo neutro e confidencial com eles pode alcançar resultados tangíveis.

Por exemplo, em 2020, o CICV atuou como intermediário neutro entre as autoridades iemenitas e o Movimento Ansarullah para a libertação simultânea de mais de mil pessoas detidas naquele país. A operação foi a maior libertação simultânea de prisioneiros entre os lados em conflito e foi realizada com base na confiança que conquistamos ao facilitar libertações semelhantes de pessoas detidas no Iêmen no ano anterior à troca.

Embora excepcional em escala, a operação no Iêmen não é exceção. O CICV atua regularmente como intermediário neutro na libertação de civis e membros das forças armadas e de segurança que estão detidos por grupos armados não estatais. Por exemplo, nas últimas décadas, facilitamos a libertação de mais de 1,8 mil pessoas detidas por grupos armados não estatais na Colômbia, incluindo 22 pessoas em 2020. Além disso, por mais de uma década visitamos pessoas detidas (membros das Forças de Segurança Nacional afegãs) em poder do Talibã no oeste do Afeganistão. As visitas às pessoas detidas nas mãos de grupos armados não estatais fazem parte do nosso compromisso com todas as partes em conflitos armados. No mesmo período, realizamos visitas sistemáticas a pessoas detidas por forças afegãs, internacionais e norte-americanas.

Embora visitar pessoas detidas seja uma característica única do trabalho do CICV, as nossas operações de proteção e assistência são muito mais amplas. Vão desde o diálogo contínuo com os grupos armados não estatais para contribuir para uma melhor compreensão e implementação das normas do DIH até a prestação de assistência às pessoas que vivem sob o controle dos grupos armados não estatais. Este último pode ser diversificado e é definido pelas necessidades da população civil. Em alguns contextos, isso pode exigir a facilitação da remoção de resíduos de guerra não detonados e o nivelamento de terras agrícolas danificadas para ajudar os agricultores. Em outras situações, exigirá a reabilitação e o apoio à infraestrutura médica em uma área sob controle de forças não estatais. Tais operações e diálogo são particularmente importantes para os 60 a 80 milhões de pessoas que, segundo as nossas estimativas, vivem sob o controle exclusivo de grupos armados.

Um ambiente operacional cada vez mais desafiador

O diálogo direto com os grupos armados não estatais e o acesso aos territórios nos quais os grupos armados não estatais operam nos permite manter a proximidade com as pessoas afetadas pelo conflito. Nas últimas décadas, porém, o ambiente operacional de organizações como o CICV tornou-se cada vez mais complexo. Duas tendências merecem destaque.

A primeira tendência é a proliferação de grupos armados na última década. Em alguns dos conflitos recentes mais complexos, analistas observaram centenas — senão milhares — de grupos operando em um único país. A multiplicação de grupos armados, a sua natureza diversa e as diferentes formas de atuação tornam cada vez mais difícil para as organizações humanitárias operar com segurança. Explicando de uma forma mais simples: enquanto negociar o acesso humanitário seguro com a liderança de um grupo armado não estatal hierarquicamente estruturado que controla uma parte claramente delineada de um território é um desafio, a tarefa se torna significativamente mais complexa quando as negociações humanitárias devem ser conduzidas com vários grupos, alianças de grupos, grupos dissidentes e lideranças em mudança. Cada negociação leva tempo e traz novos desafios — o interlocutor pode não nos conhecer, pode não entender o nosso mandato e pode, em alguns casos, não aceitar o nosso trabalho.

A segunda tendência é marcada por uma rede cada vez maior de medidas legais e outras tomadas pelos Estados para lidar com grupos armados não estatais designados como “terroristas” e/ou incluídos em listas de sanções em nível internacional, regional e nacional. Sem dúvida, os Estados têm o direito e o dever de proteger a segurança e o bem-estar das suas populações. No entanto, já se reconhece que a luta contra os grupos armados não estatais envolvidos no terrorismo e/ou considerados como uma ameaça à paz e à segurança internacionais teve, em alguns casos, o efeito de reduzir o espaço para a ação humanitária. A designação de grupos armados não estatais como “terroristas” ou como “entidades listadas” também pode representar um risco para quem dialoga com esses grupos — mesmo por razões humanitárias — com consequências legais e outras potencialmente graves. A menos que a ação humanitária imparcial seja excluída do escopo das medidas antiterroristas e regimes de sanções, as atividades regulares do CICV — e de outras organizações humanitárias — correrão o risco de se encontrar com sérios obstáculos legais e operacionais.

***

O diálogo humanitário com grupos armados não estatais que fazem parte de um conflito armado não internacional não é novidade. É uma atividade prevista nas Convenções de Genebra de 1949 e é uma prática conhecida do CICV há muito mais tempo. É uma necessidade humanitária e um caminho de ação indispensável que organizações humanitárias imparciais devem adotar para ajudar e proteger todas as pessoas afetadas por conflitos armados. Seja para permitir que soldados do governo detidos se comuniquem com os seus entes queridos, fornecer alimentos para populações necessitadas ou distribuir vacinas para pessoas fora do alcance das autoridades do Estado — os resultados humanitários de tal diálogo são tangíveis e devem ser apoiados.

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