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Um mal desnecessário: a batalha discursiva sobre o significado das armas nucleares

Ação humanitária / Análise / Direito e conflito armado / História 14 mins read

Um mal desnecessário: a batalha discursiva sobre o significado das armas nucleares

“Mal Necessário” foi o avião Boeing B-29-45-MO Superfortress designado para fotografar os efeitos do bombardeio atômico de Hiroshima em 1945.

Os depoimentos das vítimas e sobreviventes das armas nucleares nos levam a imaginar o inimaginável, pensar o impensável e dar voz ao indizível sofrimento causado pelas bombas atômicas.

Esta semana, por ocasião dos 75 anos dos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki, Magnus Løvold, assessor de políticas da Unidade de Armas da Divisão Jurídica do CICV, convida-nos a honrar e recordar os testemunhos dos sobreviventes expostos às armas nucleares pelo que elas realmente são: nada mais – e nada menos – que terríveis e injustificáveis ferramentas de guerra que devem ser proibidas e eliminadas.

Lembro-me da primeira vez que visitei Hiroshima. Foi uma semana sufocante no final de agosto de 2012. Funcionários de governo, ativistas da sociedade civil e sobreviventes haviam celebrado recentemente o 67.o aniversário da explosão nuclear que devastou a cidade em 1945. Eu estava ali para participar do Congresso Mundial da organização Médicos Internacionais para a Prevenção da Guerra Nuclear (IPPNW), um federação global de grupos de profissionais da saúde que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1985 por seus esforços para conscientizar sobre “as consequências catastróficas da guerra atômica”.

Eu trabalhava na época para a Campanha Internacional para a Abolição de Armas Nucleares (ICAN) e pensava que sabia tudo o que precisava sobre essas armas. Motivado pela arrogância juvenil e pelo desejo de deixar minha marca no mundo, me convenci de que poderíamos proibir as armas nucleares se realmente quiséssemos.

Já não me lembro o que esperava descobrir em Hiroshima. Mas, ao sair do aeroporto em um velho Toyota Comfort, com seus assentos revestidos por aquele tecido branco e bordado tão característico dos táxis japoneses, a primeira coisa que me chamou a atenção foi como a cidade parecia normal – completamente sem marcas.

Ao cruzar a ponte Tsurumi até o bairro de Naka, epicentro da explosão de 1945, vi uma típica cidade japonesa repleta de carros bonitos, que pareciam de Matchbox, lustrosos hotéis arranha-céus, bares de saquê e restaurantes de okonomiyaki abarrotados com suas luzes de neon. Pela janela aberta do meu carro, observei as pessoas cuidando de seus afazeres diários, como se nada fora do comum tivesse acontecido no bairro.

Lembro-me de ter pensado: “Isso é realmente Hiroshima? Será que esta é a cidade que vi devastada, ‘achatada e lisa como a palma de uma mão’, em todas aquelas fotos em preto e branco?”

Cenotáfio para as vítimas da bomba de Hiroshima

Monumento à Paz das Crianças

Memorial da Paz de Hiroshima

Foi somente mais tarde, naquele dia, enquanto caminhava pelo Parque Memorial da Paz de Hiroshima, que comecei a perceber as cicatrizes deixadas pela explosão nuclear de 1945. Avistei o enorme cenotáfio do Memorial, erguido em forma de cela, que conduz o olhar através de um vazio, humildemente prometendo não “repetir o erro”. Segui para o norte e vi o monumento construído para recordar o número insuportavelmente alto de crianças vítimas da explosão nuclear. O monumento estava rodeado por milhares de guindastes de papel coloridos, todos dobrados para cumprir o último desejo de Sadako Sasaki, de 12 anos, de um mundo sem armas nucleares. Do outro lado do rio Motoyasu, olhei para as famosas ruínas da Cúpula da Bomba Atômica, em um estado permanente de quase colapso, símbolo da natureza transitória das memórias dolorosas.

Essas foram as cicatrizes visíveis de Hiroshima. No entanto, somente quando comecei a escutar é que percebi que o verdadeiro impacto da explosão não estava nos monumentos da cidade, mas na mente de seu povo.

Nos dias seguintes, escutei muitos depoimentos de vítimas e sobreviventes da explosão nuclear – os hibakusha. Seus relatos me tocaram profundamente, obrigando-me a enfrentar meus próprios preconceitos. Na minha pressa de elaborar um plano sobre como as armas nucleares poderiam ser proibidas, me esqueci de fazer a pergunta mais fundamental: o que as armas nucleares realmente significam para a humanidade?

Eu viria a perceber, a partir daquelas discussões que existiam na minha própria imaginação – e também na das pessoas, como descobri mais tarde –, duas “imagens mentais” distintas e parcialmente conflitantes das armas nucleares, para usar um termo do escritor americano Walter Lippmann. Uma é baseada nos testemunhos dos hibakusha e nas normas e princípios do Direito Internacional Humanitário (DIH); a outra, no medo de uma guerra nuclear que destrua o mundo.

O fato de que o verdadeiro significado das armas nucleares ainda não tenha se estabelecido na imaginação das pessoas pode explicar, por exemplo, as descobertas aparentemente paradoxais da pesquisa “Os millennials e a guerra” do CICV. Embora a pesquisa tenha demonstrado o amplo consenso entre os millennials de que as armas nucleares são uma ameaça à humanidade (84% dos entrevistados responderam que o uso dessas armas em guerras ou conflitos armados nunca é aceitável), quase metade deles também afirmou que as armas nucleares são uma medida eficaz de dissuasão.

A coexistência das duas “imagens mentais” explica por que as divisões nesse debate estão tão entrincheiradas entre os proponentes e os oponentes do Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares e entre os defensores e os críticos da dissuasão nuclear. A natureza irreconciliável do debate e a falta de um denominador comum entre esses campos deve-se ao fato de que tais grupos querem dizer duas coisas diferentes quando se referem a “armas nucleares”.

Uma abordagem baseada em efeitos: o apelo à proibição nuclear

A primeira “imagem mental” é um entendimento das armas nucleares baseado em efeitos, com foco nas consequências documentadas das armas nucleares como meio de guerra. Essa concepção fundamenta-se nas evidências de sofrimento e devastação causadas pelas bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, evocadas pelos testemunhos dos hibakusha e pelos relatos daqueles que tentaram, em condições quase impossíveis, aliviar a dor dos moribundos e feridos.

Os arquivos do CICV oferecem uma visão inquietante da terrível realidade por trás dessa imagem. Poucas semanas após o bombardeio de Hiroshima, o delegado do CICV Fritz Bilfinger  chegou à cidade para avaliar os danos. O telegrama que ele enviou ao Dr. Marcel Junod, chefe da delegação do CICV em Tóquio, revela um quadro assustador:

“Cidade arrasada; 80% dos hospitais destruídos ou seriamente danificados; inspecionei dois hospitais de emergência, condições indescritíveis, ponto; efeitos da bomba misteriosamente sérios, ponto.”

Da perspectiva de Junod, que viajou a Hiroshima poucos dias após ter recebido o telegrama de Bilfinger para assistir as vítimas, as armas nucleares eram uma entre outras armas desumanas. Reconhecidamente uma arma terrível e exclusivamente destrutiva, mas ainda assim uma arma, de tipo comparável ao gás venenoso usado com efeitos cruéis durante a Primeira Guerra Mundial. Desse ponto de vista, a questão sobre as armas nucleares assumiu uma forma relativamente simples, qual seja, se essa ferramenta de guerra em particular, dadas as suas consequências e à luz das normas da guerra acordadas, deveria ser permitida para uso em conflitos armados.

Conhecedor dos horrores da guerra, o próprio Junod parecia não ter dúvida sobre como responder a essa pergunta. Nas reflexões no diário de suas experiências em Hiroshima, ele apelou para que as armas nucleares fossem totalmente proibidas – posição adotada depois pelo CICV e por todo o Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho.

Uma concepção baseada no medo: a teoria da dissuasão nuclear

Nos anos e décadas posteriores aos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki, a concepção das armas nucleares baseada em efeitos e adotada por Junod seria desafiada por um entendimento alternativo – uma imagem influenciada não pelas experiências vividas pelos hibakusha e outras testemunhas oculares, mas pelo medo de uma guerra nuclear sem precedentes, que destruísse o mundo.

As sementes dessa concepção alternativa das armas nucleares se originaram das mentes de alguns daqueles que primeiro as desenvolveram. Após presenciar a bola de fogo no local de testes Trinity Site em 1946, J. Robert Oppenheimer, chefe dos cientistas do laboratório de Los Alamos, recorreu às escrituras em sânscrito para expressar o que havia visto: “Transformei-me na Morte, a destruidora de mundos.”

Alimentada pelo medo de uma guerra total causada pela dramática expansão de arsenais nucleares durante a Guerra Fria, a concepção das armas nucleares baseada no medo tomou conta da imaginação do público. Nas mentes dos formuladores de políticas nucleares e ativistas da sociedade civil, o uso de armas nucleares foi cada vez mais entendido em termos escatológicos como um “Juízo Final” ou “Armagedom”.

Essa guinada discursiva no debate sobre as armas nucleares teve diversas consequências. Como observou Nina Tannenwald em seu estudo seminal The Nuclear Taboo, o entendimento das armas nucleares como uma arma excepcional – de fato, incomparável – deu origem a um “tabu” cada vez mais forte, uma proibição normativa implícita contra o uso de armas nucleares. Segundo Tannenwald, o surgimento gradual desse tabu explica por que as armas nucleares não foram usadas em um conflito armado desde os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki.

Enquanto deslegitimava o uso de armas nucleares, porém, a concepção dessas armas em termos de um “Juízo Final” inimaginável e sem precedentes na verdade legitimou sua posse.

Conforme a lógica daquela que ficaria conhecida como “teoria da dissuasão nuclear” nos anos que se seguiram aos bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki, nenhum governo, em sã consciência, correria o risco de que um conflito escalasse para uma guerra nuclear, justamente por causa da inaceitável devastação que toda a humanidade sofreria com essa guerra.

Ao levantar a hipótese de que a paz e a instabilidade internacionais exigiam a constante ameaça de seu antípoda – a guerra nuclear total –, a teoria da dissuasão nuclear tornou possível ver a ameaça do uso dessas armas como um “mal necessário” e um símbolo de responsabilidade, racionalidade e poder. A ameaça extrema da guerra nuclear garantiria não apenas que as armas nucleares não fossem usadas no futuro, mas também um estado perpétuo de equilíbrio entre os Estados que as possuíssem.

Um campo de batalha abstrato, acima da lei?

Essa concepção das armas nucleares baseada no medo alterou a questão inicialmente levantada por Marcel Junod. O que começou como um debate baseado em evidências – e efeitos – sobre a legitimidade do uso de armas nucleares em conflitos armados mudou para um debate altamente especulativo sobre como a ameaça da aniquilação total poderia ser usada para prevenir a guerra em geral, e a guerra nuclear em particular.

Ao conceber as armas nucleares não como um meio desumano, mas como uma construção abstrata fora e além das considerações do campo de batalha do mundo real, o enfoque baseado no medo retirou as armas nucleares da estrutura conceitual – o DIH – que havia sido tentado e testado para limitar os efeitos nocivos do conflito armado.  Os limites, afinal, não poderiam ser impostos sobre algo absoluto.

Essa guinada discursiva se antecipou, por muitos anos, a qualquer tentativa de transformar o apelo de Junod por uma proibição completa das armas nucleares em uma proposta política séria. Ao argumentar que a paz e a estabilidade internacionais exigiam a constante ameaça do uso das armas nucleares, os abolicionistas nucleares foram deixados com a tarefa impossível de provar uma falácia lógica: demonstrar que seu pedido de proibição e eliminação das armas nucleares não colocaria em risco a segurança global – ou, pior, não levaria à Terceira Guerra Mundial.

De volta à realidade: lutar pelo futuro coletivo da humanidade

Muitas pessoas se acostumaram a pensar sobre armas nucleares em termos de um “Juízo Final” inimaginável, aparentemente se esquecendo de uma dura realidade: armas nucleares foram usadas, duas vezes, causando um sofrimento não apenas inteiramente imaginável, mas extenso, real e duradouro entre as pessoas de Hiroshima e Nagasaki.

No entanto, apesar de suas consequências reais, os bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki ocorreram há muito tempo. Mesmo com a recente decisão do Tribunal Distrital de Hiroshima de reconhecer outras dezenas de sobreviventes do bombardeio atômico da cidade, em breve chegará o dia em que não haverá mais ninguém para contar os relatos em primeira mão do sofrimento e da devastação causados pelos ataques. Isto deixa aqueles que ouviram os hibakusha com a responsabilidade especial de garantir que suas histórias não serão perdidas. E uma responsabilidade para o resto de nós de definir as políticas sobre as armas nucleares não pelo medo de uma guerra nuclear destruidora do mundo, mas pelas consequências reais de seu uso.

De fato, somente quando os testemunhos dos hibakusha e a realidade das consequências humanitárias catastróficas das armas nucleares foram reinseridos como pontos de partida para discussões internacionais sobre essas armas é que a proposta para uma proibição total voltou a despertar interesse. Os esforços conjuntos de Estados, organizações Internacionais, sociedade civil e pesquisadores, nos últimos 10 anos, para chamar a atenção sobre o impacto humanitário catastrófico e mudar o discurso representam uma iniciativa estratégica para cultivar um entendimento comum das armas nucleares como meios de guerra terríveis e injustificáveis.

Como afirmou o ex-presidente do CICV Jakob Kellenberger em seu histórico discurso ao Corpo Diplomático de Genebra, prévio à Conferência de Revisão do Tratado de Não Proliferação Nuclear:

“A ocorrência [do debate sobre armas nucleares] deve, em última instância, ser sobre seres humanos, sobre as normas fundamentais do Direito Internacional Humanitário e sobre o futuro coletivo da humanidade.”

A adoção, sete anos mais tarde, do histórico Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares foi um resultado concreto desses esforços. A entrada em vigor e o futuro impacto do tratado dependerão de que seus proponentes consigam manter os testemunhos dos hibakusha e as evidências das consequências humanitárias em um lugar de destaque na imaginação do público.

Como nos disse a Sra. Keiko Ogura, que tinha oito anos quando testemunhou as consequências do bombardeio atômico de Hiroshima, durante minha última visita:  “Sou uma testemunha. Agora, ao me ouvir, vocês são testemunhas também. Insto vocês a adotarem medidas para garantir que a tragédia de Hiroshima nunca se repita.”

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