Os conflitos armados têm repercussões duradouras sobre a população afetada, mesmo após sua cessação. As organizações humanitárias que atuam nesses contextos podem aliviar o sofrimento e contribuir para o usufruto dos direitos humanos. Para isso, suas atividades devem ser facilitadas e suas equipes devem ser protegidas em todos os momentos.
Nesta postagem, que faz parte da nossa série “DIH após situações de conflito”, Émilie Charpentier, Associada Jurídica do CICV, descreve o marco jurídico aplicável a atividades humanitárias durante e após situações de conflito armado e propõe soluções jurídicas aos desafios enfrentados por organizações humanitárias no exercício de seu mandato.
Uma situação de conflito deixa sérias consequências para a população civil: a separação de famílias, a destruição de infraestrutura, pessoas deslocadas internamente ou refugiadas em outros países, e indivíduos feridos ou doentes. A população ainda carece de assistência e proteção urgentes. Os primeiros socorristas são membros da comunidade, depois representantes do Estado ou de quem quer que detenha o controle sobre o território. Porém, se esses atores não tiverem capacidade de resposta, organizações humanitárias podem intervir e se tornar um elemento-chave da recuperação completa da população civil após a cessação do conflito. E é essencial garantir a proteção contínua dessas organizações.
Entretanto, atores humanitários do mundo todo – como o CICV, entre outros – enfrentam desafios como a insegurança, obstáculos administrativos criados por atores estatais e não estatais, e o risco de sofrer prisão e ações judiciais devido à execução de seu mandato em lugares onde a legislação penal antiterrorismo e os regimes sancionatórios são rigorosos ou não contemplam isenções humanitárias.
De acordo tanto com o Direito Internacional Humanitário (DIH) quanto com o Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), os Estados sempre têm a obrigação primordial de atender às necessidades da população sob sua jurisdição e controle. Esse dever é derivado do princípio da soberania dos Estados, do direito internacional geral e das obrigações dos Estados no que tange aos direitos humanos. Conforme disposto pelos Princípios Orientadores na resolução da Assembleia Geral da ONU sobre o Fortalecimento da coordenação da assistência humanitária de emergência das Nações Unidas, esta obrigação primordial inclui o papel dos Estados de iniciar, organizar, coordenar e implementar a assistência humanitária dentro de seu território.
Em situações de conflito armado, o DIH proporciona um arcabouço conceitual para o acesso humanitário e o desempenho de atividades relacionadas. Contudo, em outras situações de emergência ou durante o período de transição após o término de um conflito armado, surge a pergunta de se o direito internacional geral e o DIDH também implicam obrigações por parte dos Estados de aceitar e proteger o exercício de tais atividades. Na realidade, o limite entre o conflito armado e a paz não é tão claro. Mesmo após a cessação de um conflito, suas consequências ainda são nítidas e exigem uma resposta humanitária para assegurar uma transição verdadeira rumo à paz e ao fim do sofrimento humano que ele provoca.
Proteção garantida pelo DIH durante e após o conflito
Segundo o DIH, as organizações humanitárias imparciais têm o direito irrestrito de oferecer seu serviços às partes para responder às necessidades básicas da população afetada por um conflito armado. A autorização para conceder tal acesso é dependente do consentimento dos Estados partes envolvidos – exceto em situações de ocupação, em que não há uma obrigação positiva de aceitar assistência –, mas ela não deve ser recusada sem fundamento legal, especialmente se tal recusa puder colocar em risco o direito fundamental das vítimas. Além disso, em situações de conflito armado internacional (CAI) e conflito armado não internacional (CANI), o ataque a funcionários, materiais e veículos envolvidos na prestação de assistência humanitária é considerado uma violação grave do DIH e um crime de guerra (Estatuto de Roma, art. 8º(2)(b)(iii) e 8º(2)(e)(iii)).
Em muitas regiões, existe uma diversidade de partes envolvidas em diferentes conflitos armados. Em situações de conflitos prolongados, pode ser complicado estabelecer um nexo entre certas necessidades humanitárias e um conflito em particular, dado que os efeitos das hostilidades tendem a ser generalizados. Em contextos com muitos conflitos simultâneos, a impossibilidade de se identificar de qual conflito uma consequência humanitária é decorrente não deveria impedir as pessoas de receber a assistência e a proteção humanitárias de que precisam.
Mesmo após a cessação de todos os conflitos armados, há uma série de disposições do DIH que permanecem relevantes e aplicáveis no que se refere a pessoas privadas de liberdade ou à obrigação de cuidar de indivíduos feridos e doentes. Portanto, nesse sentido, a proteção especial garantida pelo DIH às atividades e aos profissionais humanitários ainda deveria ser respeitada.
A importância das atividades humanitárias para responder a todas as necessidades resultantes de conflitos armados e situações de violência é reconhecida nos Estatutos do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, que dão ao CICV o mandato não apenas de atuar em situações de CAI, CANI e confrontos internos, como também de responder aos “resultados diretos” de tais situações. Conforme disposto no Acordo de Sevilha, o conceito de “resultados diretos” aplica-se para além da cessação das hostilidades e durante o período pós-conflito, em que as vítimas ainda carecem de ajuda humanitária.
O papel central dos direitos humanos
Durante um conflito armado, o DIH e o DIDH são complementares. No entanto, uma vez que o conflito armado termina e o DIH deixa de ser aplicável, ou é aplicável somente em certos casos, perduram as obrigações estabelecidas pelo DIDH. O conflito pode ser seguido de atos esporádicos de violência que não atingem o nível de organização e intensidade necessários para serem classificados como CANI, mas ainda geram instabilidade e consequências humanitárias. Os Estados devem se certificar de que toda a população conte com um nível mínimo de direitos humanos fundamentais enquanto se empenham ativamente para assegurar o pleno usufruto de todos os direitos humanos. Mesmo em situações de emergência, os Estados têm a obrigação de garantir os níveis mínimos essenciais de todos os direitos humanos.
Segundo o DIDH, o acesso à assistência humanitária não é considerado um direito humano por si só. Entretanto, a facilitação da assistência humanitária é uma maneira adicional de os Estados cumprirem sua obrigação de manter os níveis essenciais de direitos fundamentais e de promover o usufruto progressivo de todos os direitos. Os Estados também têm a obrigação de proteger todos os indivíduos que se encontrem dentro de seu território e estejam sujeitos a sua jurisdição, sem discriminação alguma (Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, art. 2º). Portanto, os profissionais humanitários gozam de proteção garantida pelo DIDH, como a proteção contra privações arbitrárias de seu direito à vida ou contra a prisão e detenção arbitrárias. A importância da cooperação internacional é ressaltada em ambos os Pactos Internacionais (o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), e os recursos disponibilizados pela comunidade internacional devem ser considerados “recursos disponíveis” no momento de avaliar se o Estado em questão tomou todas as medidas necessárias para garantir o usufruto dos direitos humanos.
Os Estados têm a obrigação de proteger os direitos humanos básicos e fundamentais, como o direito à vida e a proibição da tortura e de outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. A recusa ilegítima de um Estado de permitir o acesso humanitário poderia configurar uma violação do direito à vida. Esse seria o caso em situações em que a população carece urgentemente de assistência humanitária para evitar a inanição ou a desnutrição severa, mas o Estado se recusa a conceder acesso embora não tenha capacidade ou intenção de responder efetivamente a essas necessidades por conta própria. A negação da distribuição de suprimentos essenciais a populações que já se encontram em condições precárias devido a um conflito armado ou uma situação de violência poderia resultar em sofrimento não só físico, como também mental.
Ainda que o pleno usufruto dos direitos econômicos, sociais e culturais (DESC) possa se dar ao longo do tempo, isso não inviabiliza a existência de obrigações básicas que devem ser respeitadas de forma imediata. É esse o caso do direito a um padrão de vida adequado – que contempla alimentação, água e abrigo – e do direito à saúde. A obrigação de respeitar os DESC engloba o respeito ao acesso humanitário já concedido durante o conflito armado e que ainda contribui para o usufruto desses direitos após a cessação do conflito. De fato, qualquer medida deliberadamente regressiva teria que ser justificada, uma vez que o usufruto dos direitos deve ser progressivo.
Em seu Comentário geral sobre o direito à alimentação, o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais enfatiza que as violações do direito à alimentação podem ocorrer por meio da ação direta dos Estados, como o impedimento do acesso a ajuda alimentar humanitária. Qualquer limitação do usufruto de direitos deve ter como finalidade o “bem-estar geral da população”, acatar a legislação, visar a objetivos legítimos e estar em consonância com os princípios da necessidade e da proporcionalidade. A obrigação de proteger os DESC exige que os Estados assegurem o acesso seguro e desimpedido a ajuda humanitária que contribua para o usufruto de tais direitos. Para os Estados, o cumprimento dessas obrigações pode requerer a adoção de medidas e leis que visem fortalecer proativamente o acesso da população a meios e recursos.
Proteção adicional
As vítimas de conflitos armados que carecem de assistência humanitária também podem estar fora da zona de conflito; por exemplo, se tiverem sido deslocadas ou procurado refúgio. Embora o DIH talvez não seja aplicável nos lugares onde essas pessoas se encontram, elas ainda têm direito a proteção. Nesse sentido, tanto a Convenção sobre os Direitos da Criança quanto a Carta Africana dos Direitos e do Bem-Estar da Criança estabelecem uma obrigação para os Estados de assegurar a prestação de assistência humanitária a crianças que estejam procurando refúgio ou que já estejam refugiadas e de providenciar a cooperação entre os Estados e organizações internacionais e não governamentais.
O Comitê dos Direitos da Criança afirma que é esperado que os Estados aceitem e facilitem a prestação da assistência oferecida para atender às necessidades de crianças desacompanhadas e separadas. Isso é reafirmado múltiplas vezes pelo Comitê no que se refere ao direito à educação, a padrões de vida adequados e à saúde, especialmente em situações em que a capacidade dos Estados é limitada. Além disso, recomenda-se fortemente que os Estados não só aceitem tais formas de assistência, como também busquem assistência internacional. Da mesma forma, a Convenção de Kampala, que garante proteção e assistência às pessoas deslocadas internamente na África, estabelece uma obrigação de permitir a passagem rápida e desimpedida de ajuda humanitária e de facilitar o papel das agências humanitárias na prestação de assistência a tais pessoas.
Como facilitar a prestação de assistência humanitária após um conflito?
É essencial que, antes e durante um conflito armado, as partes envolvidas e as organizações humanitárias façam planos e preparativos para lidar com suas consequências. Elas devem garantir que as necessidades da população civil sejam levadas em consideração em todos os momentos; caso contrário, as vulnerabilidades resultantes do conflito tornam-se mais agudas e podem ter implicações no longo prazo.
A facilitação do desempenho de atividades humanitárias em resposta aos resultados diretos de um conflito armado deve estar baseada nas necessidades das vítimas, e não em um prazo temporal. Essas necessidades podem exigir que a assistência humanitária seja prestada de forma imediata (como o cuidado às pessoas doentes e feridas após cada embate), mas também após a cessação do conflito (como a reconstrução de infraestrutura essencial para garantir o acesso a alimentação, água potável ou educação). As atividades humanitárias de longo prazo, como o estabelecimento do que pode ter acontecido com as pessoas desaparecidas, podem ser cruciais para as famílias e seu bem-estar. Elas também podem afetar e influenciar a coesão social dentro das comunidades e facilitar a transição rumo a uma paz sustentável.
Os Estados devem adotar legislação doméstica para facilitar o desempenho de atividades humanitárias em tempos tanto de conflito armado quanto de paz. Dado que os regimes sancionatórios internacionais continuam representando um desafio para a prestação de assistência humanitária e a reconstrução após uma situação de conflito, vale lembrar que a possibilidade de oferecer ajuda estritamente humanitária a pessoas em outros países, seja qual for seu objetivo ou sua filiação política, não deve e não pode ser considerada ilegítima ou contrária ao direito internacional. Essa ideia é reforçada pelo princípio geral de não discriminação, que ocupa um lugar central tanto para o DIH quanto para o DIDH, pois trata-se de uma norma peremptória do direito internacional.
Além do mais, todas as resoluções relativas a essa questão adotadas pelo Conselho de Segurança da ONU devem ser interpretadas em conformidade com a Carta das Nações Unidas e seu propósito, que é o de “promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos”. Sendo assim, toda legislação nacional que possa influir no usufruto de determinados direitos deve ser adotada em conformidade com o princípio geral do direito internacional, além de contemplar isenções humanitárias.
Em situações de conflito armado, os Estados têm obrigações claras de facilitar o desempenho de atividades humanitárias e de respeitar e proteger os profissionais humanitários, conforme disposto pelo DIH e em consonância com suas obrigações relativas aos direitos humanos. Quando um conflito armado termina, as atividades humanitárias desempenham um papel central na vida da população afetada e nos esforços posteriores de reconstrução. As organizações humanitárias que trabalham para aliviar o sofrimento da população afetada, como o CICV, devem permanecer protegidas e seu trabalho deve ser facilitado, uma vez que esse sofrimento não termina com a cessação do conflito.
Veja também:
- Victoria Riello, ‘Nothing about us without us’: including civilians with disabilities in the aftermath, 15 de novembro de 2022
- Christian Cardon, Thomas de Saint Maurice & Kelisiana Thynne, Aftermath of battles and conflict: from challenges to solutions, 13 de setembro de 2022
- Kelisiana Thynne, When will it be over? A fictional civilian’s story in the aftermath of conflict, 7 de setembro de 2022
- Kelisiana Thynne, Thomas de Saint Maurice, IHL in the aftermath of battles and conflicts: what do we want to achieve?, 14 de julho de 2022
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