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Transformações no campo de batalha: tecnologia, táticas e risco de fronteiras de guerra cada vez mais difusas

Análise / Armas / Condução das hostilidades / Direito e conflito armado / Novas tecnologias / Princípios humanitários 16 mins read

Transformações no campo de batalha: tecnologia, táticas e risco de fronteiras de guerra cada vez mais difusas

A incorporação acelerada de tecnologias emergentes nos conflitos armados está modificando não apenas as ferramentas da guerra, mas também suas táticas, sua geografia, atores envolvidos e seu impacto. Os avanços tecnológicos – dos drones comerciais à inteligência artificial, da guerra eletrônica ao uso militar da infraestrutura civil – podem colocar em risco a distinção entre as esferas militar e civil. Estas mudanças desafiam pressupostos de longa data sobre o caráter e a conduta da guerra, como elas são travadas na prática, ao mesmo tempo em que levantam preocupações legais e humanitárias relacionadas à proteção de civis e à preservação do princípio da distinção.

Neste artigo, o assessor do CICV em novas tecnologias de guerra, Ruben Stewart, explora os fatores que impulsionam esta transformação e suas implicações. Ele analisa como as tecnologias em desenvolvimento e as tendências têm influenciado a condução de hostilidades e impactado a proteção de civis. Ressalta também a necessidade urgente de preservar as normas jurídicas diante destas mudanças, especialmente o princípio da distinção, de modo a garantir que a complexidade não se torne um pretexto para o seu descumprimento. No centro de sua análise, está um apelo para que sejam consideradas as profundas consequências humanitárias que estas transformações impõem às pessoas afetadas pelos conflitos.

A natureza dos conflitos armados está mudando. Inovações antes restritas à ficção científica ou aos laboratórios estão sendo empregadas nos campos de batalha contemporâneos. Ao mesmo tempo, novos métodos de guerra têm surgido, colocando em risco a distinção historicamente estabelecida entre o militar e o civil, o físico e o digital, e entre as atividades que fazem ou não parte de uma situação de conflito armado. Esta transformação não é meramente tecnológica; é também conceitual, doutrinária e estratégica.

Os conflitos atuais são moldados por três tendências abrangentes e interconectadas: a busca por mitigar riscos, impulsionada por considerações de proteção das forças; o esforço para ampliar a letalidade; e a crescente integração de pessoas e bens civis às atividades militares. Cada uma delas impõe desafios específicos à proteção das populações civis e à aplicação do Direito Internacional Humanitário (DIH), e pode colocar em risco alguns dos pressupostos fundamentais subjacentes à condução das guerras.

Ascensão dos sistemas não tripulados e autônomos

Possivelmente, a inovação militar mais visível e amplamente adotada na última década tenha sido a proliferação de sistemas não tripulados em drones, veículos terrestres e embarcações. Antes acessíveis apenas a um número reduzido de Estados tecnologicamente mais avançados, estes sistemas tornaram-se quase onipresentes nos conflitos contemporâneos, sendo utilizados inclusive por grupos armados não estatais (GANE).

Duas categorias dominam este cenário. Primeiramente, há os sistemas comerciais prontos para uso aproveitados para fins militares, que são acessíveis, adaptáveis e, frequentemente, descartáveis. Originalmente projetados e fabricados para uso civil, estes sistemas agora são empregados em Inteligência, Vigilância e Reconhecimento (IVR), Comando, Controle e Comunicações (C3) e, cada vez mais, para realizar ataques. Em segundo lugar, estão os sistemas não tripulados construídos especificamente para operações militares. Isto inclui drones de ataque de longo alcance, munições autônomas e plataformas terrestres para apoio ao combate, logística e até mesmo evacuação médica.

Os dados produzidos sobre os conflitos em curso demonstram a escala desta transformação. Antes, apenas alguns Estados tinham acesso a uma quantidade limitada destes sistemas; hoje, a maioria dos exércitos estatais dispõe de frotas destes equipamentos, chegando, em alguns casos, a milhões de unidades. Estes números indicam não apenas uma adaptação tática, mas uma mudança fundamental na forma como a força militar é gerada e projetada.

Veículos marítimos e terrestres não tripulados também estão avançando rapidamente. Drones navais têm sido utilizados em operações contra navios, alvos costeiros, helicópteros e aeronaves de asa fixa. Plataformas terrestres estão sendo testadas e empregadas para diversas funções, desde a implantação de minas até o apoio em combates. Uma recente operação conjunta realizada inteiramente por sistemas não tripulados, ainda que em escala limitada, oferece um vislumbre do que um conflito totalmente automatizado poderá implicar no futuro.

Ver tudo, em todos os lugares, o tempo todo: sensores persistentes e o ambiente informacional

Outra característica marcante do campo de batalha atual é a explosão da coleta de dados e da integração de sensores. Forças militares modernas e atores não estatais contam com uma vasta gama de fontes de informação, como dispositivos de imagem térmica e visão noturna, Detecção e Alcance de Luz (LiDAR), radares, sensores acústicos, metadados e atualizações de satélite para criar uma imagem operacional comum (IOC).

Mas esta IOC não é gerada apenas por recursos militares. Dispositivos civis, especialmente telefones celulares, servem tanto como sistemas de coleta de informação como de comando, controle e comunicação. Os usuários de celulares podem, conscientemente, coletar e transmitir informações de inteligência do campo de batalha mas, em outras situações, seus dispositivos são usados sem seu conhecimento para localizá-los, rastreá-los e categorizá-los como alvos em potencial. Grandes volumes de dados pessoais, como registros de chamada, metadados de aplicativos e geolocalização, podem ser coletados de fontes civis, processados por sistemas com inteligência artificial integrada e reutilizados para estabelecer alvos, perfis ou operações de influência.

Para facilitar a transferência e o processamento destas informações, também houve uma integração entre as infraestruturas e ferramentas de informação civis e militares. Satélites comerciais, centros de dados, softwares civis e redes de telecomunicação são agora utilizados rotineiramente para traduzir, categorizar e armazenar comunicações interceptadas pelas forças militares, transmitir dados do campo de batalha e facilitar o comando e controle.

As implicações jurídicas são evidentes. Quando a infraestrutura digital civil é instrumentalizada para operações militares, ela também pode se tornar um objetivo militar. Além disso, os indivíduos correm o risco de serem alvos não pelo que fazem, mas pelo que seus dispositivos parecem revelar sobre eles.

Campo de batalha invisível: guerra eletrônica e interferência na comunicação

À medida que a dependência da comunicação digital aumentou, estes sistemas também se tornaram mais vulneráveis. A guerra eletrônica (GE), incluindo interferência, falsificação e interceptação de sinais, tornou-se um componente central dos conflitos contemporâneos.

Em alguns confrontos, a guerra eletrônica reduziu a precisão de munições guiadas, ampliando a margem de erro de menos de 20 metros para mais de um quilômetro. Sistemas aéreos tripulados e não tripulados foram forçados a permanecer no solo, abortar seus voos ou se perderam devido à interferência eletromagnética. Rádios criptografados foram capturados ou inutilizados, forçando os operadores a recorrer a ferramentas analógicas, como mapas em papel, e usar telefones celulares comerciais.

Bloqueadores de sinal disponíveis comercialmente já estão sendo usados por atores não estatais para interromper a comunicação e a navegação. Além de seus efeitos táticos, as emissões eletrônicas em si geram riscos: mesmo emissões breves podem revelar a localização de uma unidade para fins de ataque.

Em resposta, alguns exércitos estão adotando sistemas mais resilientes, como linhas de comunicação por fibra óptica para drones. Outros estão experimentando armas autônomas que não exigem qualquer vínculo de controle ativo, removendo efetivamente os humanos do processo de tomada de decisão.

Inteligência artificial e velocidade da guerra

A inteligência artificial (IA) está rapidamente se tornando uma ferramenta na condução das guerras. A IA está sendo usada para identificar alvos, analisar e gerenciar dados de sensores e traduzir comunicações, além de planejar e coordenar operações não tripuladas. Em um conflito, sistemas com inteligência artificial integrada podem comprimir a “cadeia de ataque” (a sequência que vai da detecção à ação ofensiva) de minutos para segundos. Em algumas aplicações, a IA tem sido usada, segundo relatos, para indicar alvos e até mesmo facilitar ataques, aparentemente com supervisão humana limitada.

Os sistemas atuais de IA são geralmente projetados para apoiar, em vez de substituir, a tomada de decisão humana. Mas este apoio pode se transformar em substituição quando as decisões são tomadas a uma velocidade tal que a supervisão humana se torna, na prática, impossível – uma condição às vezes descrita como “singularidade da IA”.

Para além da identificação de alvos, a inteligência artificial está sendo integrada à logística, vigilância e planejamento estratégico. As forças armadas estão investindo em conceitos como a “cooperação entre humanos e máquinas”, combinando plataformas com inteligência artificial integrada a sistemas tripulados para aumentar a eficiência operacional. Sistemas aéreos do tipo “ala leal” – aeronaves não tripuladas que voam ao lado de jatos pilotados – já estão operando em alguns contextos.

À medida que os sistemas de IA evoluem, sua influência provavelmente se estenderá a todos os níveis da guerra. Ao mesmo tempo, permanecem dúvidas sobre a responsabilidade legal, índices de erro e a capacidade de aplicar de forma significativa o DIH a sistemas que se adaptam de maneiras que até mesmo seus criadores podem não compreender completamente.

Uso crescente de armas de ataque de longo alcance e hipersônicas

Outra tendência notável é o uso ampliado de armas de longo alcance e alta velocidade, incluindo drones de alcance estendido, mísseis balísticos, mísseis de cruzeiro e, cada vez mais, veículos planadores hipersônicos. Estes sistemas permitem atingir alvos a mais de mil quilômetros de distância – longe das linhas de frente e, muitas vezes, em pleno território adversário.

Estas capacidades de longo alcance têm sido viabilizadas pelo desenvolvimento de novos sistemas e, em outros casos, pela adaptação de munições já existentes com aprimoramentos que ampliam seu alcance e pela conversão de sistemas já existentes, como mísseis de defesa aérea, para serem usados em funções de ataque terrestre.

As armas hipersônicas – definidas como aquelas que se deslocam a mais de cinco vezes a velocidade do som – são particularmente preocupantes devido à sua manobrabilidade e velocidade, que tornam muitos dos sistemas atuais de defesa antimísseis ineficazes. Os testes e implantações estão aumentando, com alguns dos primeiros usos operacionais registrados em 2024.

As implicações para a segurança de pessoas civis são evidentes: com o aumento do alcance e da velocidade das armas, cresce também a vulnerabilidade da infraestrutura crítica e dos centros populacionais situados longe das linhas de frente – muitas vezes sem a mitigação proporcionada por alertas emitidos em tempo hábil ou pela interceptação eficaz por sistemas de defesa aérea.

Ampliação do domínio dos conflitos armados

A guerra moderna já não se limita aos domínios terrestre, marítimo e aéreo – há uma atividade militar crescente nos domínios cibernético e espacial, assim como no ambiente informacional.

As operações cibernéticas que têm como alvo infraestruturas públicas, redes de comunicação e sistemas de transporte tornaram-se mais frequentes. Atividades abaixo do limiar de conflito armado, como interferências em GPS que afetam a aviação civil, sabotagem cibernética e  campanhas de desinformação, tornaram-se elementos rotineiros nas disputas entre Estados.

No espaço, o número expressivo de satélites lançados em anos mais recentes, muitas vezes chegando a centenas em um único ano, ilustra a crescente centralidade do domínio espacial para atividades de IVR e C3. O bloqueio, a falsificação de sinais ou mesmo a interferência física em satélites militares e comerciais – assim como as preocupações quanto ao uso de pulsos eletromagnéticos (PEM) gerados por energia nuclear para desativar satélites de órbita terrestre baixa – evidenciam a fragilidade deste domínio.

Da defesa à “defesa total”

Em resposta à crescente escala e complexidade das ameaças, diversos Estados têm adotado estratégias de “defesa total”, isto é, abordagens que envolvem toda a sociedade e integram recursos militares, civis, econômicos e tecnológicos no planejamento da segurança nacional. Estas estratégias frequentemente incluem orientações para a população civil sobre como se preparar para emergências, manter serviços essenciais e, em alguns casos, contribuir para os esforços de defesa nacional. Além disso, os marcos de defesa nacional incluem considerações sobre como empresas de tecnologia e infraestruturas civis críticas, como telecomunicações, serviços de TIC e redes de satélites, podem ser usadas para apoiar os esforços de defesa militar.

Embora a participação civil possa aumentar a resiliência dos Estados, envolver pessoas civis de forma mais direta em funções de apoio – como coleta de informações, logística ou resistência civil – levanta sérias preocupações humanitárias. Por exemplo, quanto maior o envolvimento de  pessoas e infraestruturas civis de TIC em atividades militares, maior será o risco de exposição a danos e mais desafiador será garantir o respeito ao princípio da distinção previsto no Direito Internacional Humanitário.

Estados que implementam modelos de defesa total devem considerar como equilibrar a prontidão com a proteção, assegurando que pessoas civis permaneçam protegidas dos efeitos das hostilidades e não sejam expostas a riscos desnecessários devido ao seu envolvimento em operações militares.

Consequências humanitárias e necessidade de reflexão

Em meio a todos estes avanços, uma tendência preocupante se mantém: a crescente dissolução dos limites entre os âmbitos civil e militar. Seja pelo emprego militar de tecnologias comerciais prontas para uso, pela utilização de infraestruturas civis para fins militares ou pela mobilização dos próprios civis, a linha entre combatentes e não combatentes tende a tornar-se cada vez mais difícil de traçar.

Isto é particularmente relevante quando o uso militar de civis ou bens civis levanta questões sobre a compatibilidade desta prática com a obrigação de protegê-los dos efeitos das hostilidades, conforme previsto pelo DIH. Se a linha entre civis e militares se tornar difusa, o princípio da distinção – a obrigação de diferenciar entre objetivos militares e pessoas e bens civis – torna-se mais difícil de implementar. O mesmo acontece com as regras relativas à proporcionalidade, às precauções no ataque e à proteção da infraestrutura civil.

Além disso, à medida que a guerra torna-se mais veloz, automatizada e orientada por dados, o espaço para um julgamento humano significativo se reduz. Decisões com consequências de vida ou morte podem ser tomadas na velocidade da máquina, com base em dados e programações que permanecem invisíveis para operadores humanos.

Conclusão: rumo a um espaço de batalha mais complexo

O espaço de batalha do futuro será moldado por três tendências convergentes: a redução de riscos, por meio de sistemas não tripulados e de longo alcance e da automação de tarefas perigosas; a busca por maior letalidade, por meio de redes de sensores, tomada de decisões mais rápida e operações em múltiplos domínios; e o risco de uma crescente integração militar de civis e bens de caráter civil, desde infraestruturas e ferramentas comerciais prontas para uso até estratégias de defesa total.

Estas inovações e sua aplicação devem ser acompanhadas de uma maior consideração quanto às consequências de seu uso e da adoção de salvaguardas para reduzir o risco de danos civis. À medida que o caráter dos conflitos evolui, os atores armados devem remeter-se constantemente aos marcos legais, éticos e humanitários que orientam sua atuação. A tecnologia pode transformar o modo como as guerras são travadas, mas suas causas e quem elas afetam se mantêm relativamente constantes.

À medida que as linhas se tornam mais tênues e a guerra se acelera, torna-se cada vez mais urgente manter firmes os princípios e normas que distinguem o conflito armado da violência indiscriminada, em especial o Direito Internacional Humanitário. Estas normas não são opcionais – são essenciais para preservar nossa humanidade compartilhada. Longe de serem um fardo, estas normas oferecem um arcabouço para navegar na complexidade, impor clareza em meio à confusão e ajudar a garantir que a inovação tecnológica não ocorra às custas da vida de civis.

 

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