Durante conflitos armados e outras situações de violência, o acesso oportuno a informações confiáveis pode salvar vidas. As pessoas afetadas precisam saber de onde vêm o perigo e os riscos, como e onde podem obter assistência e como se proteger e ter acesso aos serviços de que necessitam. Ao mesmo tempo, as dimensões do conflito relativas à informação tornaram-se parte das linhas de frente digitais, onde as informações prejudiciais se espalham a uma escala, numa velocidade e com um alcance sem precedentes. O espaço da informação pode estar repleto de narrativas que distorcem fatos que são essenciais para tomar decisões sobre como refugiar-se ou estar em segurança, que minam as operações humanitárias ou que afetam o comportamento das pessoas, alimentando a polarização e o discurso de ódio ou desencadeando ou incitando a violência contra populações civis.
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) teme que a disseminação de narrativas enganosas ou de ódio possa prejudicar a proteção e a segurança das pessoas afetadas por conflitos armados e outras situações de violência. O CICV se concentra nos possíveis efeitos nocivos resultantes da distorção de informações ou da ausência de informações confiáveis. Neste texto, a assessora de riscos digitais do CICV, Joelle Rizk, apresenta quatro riscos associados à disseminação de informações prejudiciais em situações de conflito armado e explica a abordagem do CICV para lidar com seus efeitos nocivos para a população.
Na guerra, não apenas balas e foguetes causam danos às pessoas. A informação – sua ausência ou sua manipulação – é parte integrante do teatro de guerra e pode provocar consequências graves para as pessoas afetadas. Vítimas, deslocamento, trauma e lesões entre a população civil podem resultar da disseminação de informações que desencadeiam ou amplificam comportamentos nocivos, que podem violar os direitos humanos internacionais e o direito humanitário.
Em situações de conflito armado ou violência, a disseminação de narrativas enganosas ou de ódio pode prejudicar a proteção e a segurança da população, inclusive de crianças, pessoas refugiadas, deslocadas, minorias e vítimas de violência. As consequências para a população são uma grande preocupação humanitária. As informações prejudiciais podem aumentar a vulnerabilidade das pessoas e sua exposição ao risco durante situações de conflito armado ou violência. Esses efeitos se somam a outras consequências das hostilidades e da violência, como a perda de vidas, lesões e a destruição de propriedades.
Para abordar essas consequências de modo específico em situações de conflito armado e violência, é importante entender quatro riscos graves associados à disseminação de informações prejudiciais:
- Provocar consequências humanitárias graves para as pessoas. Informações prejudiciais podem afetar o bem-estar físico, psicológico, econômico e social das pessoas. É possível que as pessoas sejam privadas de informações que salvam vidas, que recebam orientações equivocadas sobre serviços vitais ou que sejam induzidas a tomar decisões que aumentam sua exposição a danos físicos. Algumas delas podem se tornar alvo de atos violentos, assédio, difamação e/ou intimidação. Elas podem ficar isoladas ou sujeitas a sofrer discriminação e desumanização, o que compromete seu senso de dignidade.
- Alimentar o ódio, a violência e o conflito. À medida que se espalham, as informações prejudiciais podem alimentar o ódio e a polarização, desencadear distúrbios e incentivar a violência. Em épocas de guerra, narrativas que aumentam a tensão e incitam o ódio minam a proteção e a resiliência das pessoas e podem se tornar um catalisador do conflito ou comprometer as oportunidades de resolução do conflito, de paz e de reconciliação.
- Prejudicar os marcos jurídicos internacionais de proteção. Além das operações ilegais de discurso ou informação, a disseminação de informações prejudiciais também pode levar a violações do direito internacional. As informações prejudiciais podem influenciar o comportamento dos portadores de armas – por exemplo, podem alimentar a violência ou a desumanização do adversário – e tornar menos provável que respeitem as normas jurídicas internacionais. Sem as proteções adequadas, algumas iniciativas para limitar a disseminação de informações podem acabar causando mais danos e infringir ainda mais os direitos individuais, como o direito à liberdade de expressão.
- Abalar a confiança, a aceitação e a segurança dos trabalhadores humanitários. A disseminação de informações falsas e manipuladas sobre organizações humanitárias, seus funcionários e voluntários ou seus mandatos e princípios abala a confiança das pessoas em suas atividades e motivações, inclusive em termos de neutralidade e independência. As campanhas de informação direcionadas a uma organização também podem provocar repercussões e minar o espaço para as ações humanitárias baseadas em princípios de outras organizações. Também podem levar a ameaças e ataques contra trabalhadores humanitários dentro e fora das redes.
Por essas razões, o CICV considera como “informações prejudiciais” a disseminação de informações que possam levar a lesões, deslocamento e sofrimento, ou que possam minar o respeito ao Direito Internacional Humanitário. Para o CICV, essas informações são um problema significativo dos conflitos, com sérios riscos de provocar consequências e impactos humanitários. Em conflitos armados, ter acesso a informações confiáveis no momento certo pode fazer a diferença entre a vida e a morte. Embora não haja um consenso internacional quanto à definição desse conceito, o termo “informações prejudiciais” é usado pelo CICV para definir todos os tipos de informação que possam levar a danos físicos, psicológicos, econômicos ou sociais.
A noção de informações prejudiciais abarca a informação enganosa (informações falsas espalhadas involuntariamente por indivíduos que acreditam que as informações são verdadeiras), a desinformação (informações falsas disseminadas propositadamente com intenções maliciosas ou para obter um benefício econômico) e a informação maliciosa (informações verdadeiras espalhadas intencionalmente para obter uma vantagem tática ou causar danos). De acordo com essa descrição, o discurso de ódio e narrativas que incitam o ódio – que talvez não sejam ilegais, embora provavelmente sejam nocivos – também são considerados informações prejudiciais. Este termo se concentra no potencial de causar dano; como tal, inclui narrativas que aumentam a tensão, narrativas que abalam o respeito pelas estruturas de proteção internacionais e narrativas que atacam pessoas protegidas pelo direito internacional.
Por que o CICV se concentra nos danos?
Na abordagem do CICV para abordar essa questão, o foco está no risco de danos, e não na categorização técnica das diferentes formas de informação e discurso que podem (ou não) ser proibidas.
- Em situações de tensão, polarização e divisão relacionadas à violência e ao conflito, é comum que a desinformação de uma pessoa seja a crença de outra. Assim, as informações prejudiciais são tanto um catalisador quanto um sintoma dos conflitos ligados a considerações ou objetivos políticos. A desinformação prospera com preconceitos cognitivos e emocionais. Durante conflitos armados e outras situações de violência, as queixas, as visões de mundo e as crenças das pessoas se tornam cruciais para sua identidade e seu senso de dignidade, e são instrumentais em suas decisões e seus comportamentos.
- A politização da questão da desinformação e da manipulação da informação colocou as organizações humanitárias no centro de jogos políticos e disputas de poder. Decisões políticas para “contrapor” e “combater” a questão podem, na prática, intensificar a polarização e as divisões, além de reforçar crenças e opiniões prejudiciais em vez de preveni-las e mitigá-las. Do mesmo modo, e apesar de sua relevância e legitimidade, as abordagens que abarcam a sociedade de modo geral, adotadas por governos e outros atores com motivações políticas, podem pressionar ainda mais a sociedade civil e os atores humanitários para implementar políticas e abordagens orientadas pelo Estado. Isso pode afetar sua independência e poderia até mesmo comprometer sua contribuição para dar respostas eficazes ao problema.
- O discurso é regulado pelo direito internacional, que não se baseia necessariamente na veracidade das informações. Embora não contenha uma definição de “informações prejudiciais”, o Direito Internacional Humanitário regula o uso de informações pelas partes em conflito e protege a vida e a dignidade das pessoas afetadas. Ao mesmo tempo, as “informações prejudiciais” nem sempre são ilegais. Propagandas, operações de informação ou outras formas de disseminar ou espalhar informações com o objetivo de enganar o adversário ou influenciar populações não estão necessariamente proibidas por si sós – seja alguma forma de desinformação para apoiar operações militares ou alcançar objetivos estratégicos. No entanto, o DIH impõe limites claros às operações de informação durante conflitos armados. Alguns desses limites estão relacionados a operações de informação que incentivam formas ilegais de violência, à propagação de informações sobre o recrutamento de crianças, à publicação de imagens de prisioneiros de guerra, à disseminação intencional do medo e do terror ou à obstrução e ao enfraquecimento de atividades humanitárias.
Concentrar-se no dano – e não na veracidade ou na categorização terminológica da informação – permite elaborar abordagens mais integrais que abarquem as diversas dimensões dos riscos associados à informação. Uma abordagem específica para conflitos armados reflete as realidades complexas e a vulnerabilidade das pessoas afetadas pela guerra e pela violência, assim como a necessidade de ter acesso a informações confiáveis e de garantir seus direitos fundamentais. Ao tentar abordar o impacto das informações prejudiciais, é importante que os Estados, os atores da sociedade civil e as organizações humanitárias garantam que as pessoas sejam resilientes e que consigam se proteger – por meio da alfabetização midiática e digital, da promoção do pensamento crítico e de abordagens localizadas que acomodem queixas, crenças e outros preconceitos psicológicos e emocionais.
Além disso, o foco em prevenir e mitigar o impacto negativo possibilita que todas as partes interessadas se envolvam com as comunidades que atendem e melhorem a conectividade e o acesso a informações confiáveis, evitando os riscos de instrumentalização política. Estados, plataformas de redes sociais, a mídia e jornalistas, atores da sociedade civil e organizações humanitárias devem desempenhar papéis diferentes, mas complementares, para fornecer, difundir e amplificar informações factuais, confiáveis e necessárias para a segurança e a dignidade das pessoas em épocas de crise. Isso inclui encorajar políticas que facilitem e possibilitem a conectividade, em vez de políticas contraproducentes que se concentrem em impedir ou desacelerar o acesso à internet ou restringir outros meios de informação e comunicação.
Por último, as épocas de guerra e tumulto costumam trazer à tona uma onda de narrativas e declarações públicas – e às vezes oficiais – que podem minar o respeito pelo DIH ou outros quadros jurídicos que protegem os direitos individuais. Em situações de maior risco de sentimentos negativos e violência, o ambiente informacional pode incentivar indiretamente atos ilícitos contra as pessoas e comprometer seu senso de dignidade; desafiar a capacidade dos Estados de garantir que as partes beligerantes respeitem o DIH; e impedir a ação humanitária ou infringir os direitos humanos. Compreender como os danos físicos, psicológicos e sociais podem se materializar através do espaço de informação possibilita compreender melhor os riscos para a segurança e a dignidade das pessoas afetadas por conflitos e embasar o diálogo e ações defesa para prevenir ou abordar suas consequências para as pessoas e a sociedade.
Todas as partes interessadas – como Estados, o setor privado (incluindo as empresas de tecnologia), a sociedade civil e as organizações humanitárias – devem cumprir suas obrigações ou responsabilidades e dar respostas que abordem de forma efetiva a disseminação de informações prejudiciais, melhorem o acesso a informações confiáveis e mitiguem os efeitos negativos das informações prejudiciais para a segurança e a dignidade das populações afetadas e para a ação humanitária baseada em princípios.
Veja também:
- Natalie Deffenbaugh, De-dehumanization: practicing humanity, 27 de junho de 2024
- Chris Brew, From content to harm: how harmful information contributes to civilian harm, 27 de fevereiro de 2024
- Tilman Rodenhäuser, Samit D’Cunha, Foghorns of war: IHL and information operations during armed conflict, 12 de outubro de 2023
Comentários