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Em poder dos beligerantes: o status e a proteção segundo as Convenções de Genebra

Ação humanitária / Análise / Comentários sobre a Terceira Convenção de Genebra / Detenção / Direito e conflito armado 13 mins read

Em poder dos beligerantes: o status e a proteção segundo as Convenções de Genebra

Quando irrompe um conflito armado internacional e as pessoas se veem sob o poder de Estados beligerantes, as quatro Convenções de Genebra de 1949 são acionadas com força total. Ao exigir o tratamento humano e criminalizar o abuso, as Convenções servem como um baluarte contra a crueldade e reafirmam a noção de que, mesmo em contextos de guerra, há limites a serem respeitados. No entanto, o foco nessas proibições universais pode desviar a atenção de outro aspecto central do funcionamento das Convenções de Genebra: elas são capazes de alcançar e proteger todas as pessoas dos beligerantes não porque tratam todos como iguais, e sim porque levam suas diferentes situações em consideração.

Nesta postagem, o assessor jurídico sênior do CICV Ramin Mahnad descreve como o enquadramento de cada indivíduo dentro de uma ou mais das categorias estabelecidas pelas Convenções constitui a base de um sistema jurídico complexo, que determina como as partes devem tratar as pessoas sob seu controle.

 

A situação na Ucrânia é um lembrete doloroso da rapidez com que o conflito armado internacional pode irromper e assolar vidas. O fato de que qualquer pessoa, em qualquer lugar, de repente pode se ver presa em meio ao sofrimento trazido pela guerra é uma realidade incontestável que, durante décadas, vem mantendo aceso um comprometimento mundial com as quatro Convenções de Genebra de 1949. Os Estados, que ratificaram unanimemente as Convenções, reafirmam esses documentos em todas as ocasiões possíveis, demonstrando um consenso internacional de que seria imprudente que a humanidade voltasse a baixar sua guarda no futuro.

Quando irrompe um conflito armado internacional e novas populações se veem à mercê de Estados beligerantes, as Convenções são acionadas com força total. Ao exigir o tratamento humano e configurar o homicídio, a tortura, a mutilação e uma série de outras formas de abuso como crimes internacionais, as Convenções de Genebra servem como um baluarte contra a crueldade e reafirmam a noção de que, mesmo em contextos de guerra, há limites a serem respeitados.

Por mais essenciais que sejam, o foco nessas proibições universais pode desviar a atenção de outro aspecto central do funcionamento das Convenções de Genebra: elas são capazes de alcançar e proteger todas as pessoas em poder dos beligerantes não porque tratam todos como iguais, e sim porque levam suas diferentes situações em consideração. Além da proibição objetiva de diversas atrocidades, o direito aplicável a conflitos armados internacionais — o Direito Internacional Humanitário (DIH) — estabelece proteções muito mais elaboradas e trata diretamente dos diversos papéis que as pessoas podem chegar a desempenhar se suas vidas forem assoladas pela guerra. O enquadramento de cada indivíduo dentro de uma ou mais das categorias estabelecidas pelas Convenções (combatentes, civis, prisioneiros de guerra, pessoal médico, pessoal religioso, enfermos, feridos, náufragos, mulheres, crianças, adolescentes, mercenários e pessoas com deficiência) constitui a base de um sistema jurídico complexo, que rege o tratamento que deve ser dado pelas partes envolvidas às pessoas que estiverem sob seu controle.

Prisioneiros de guerra e a III Convenção de Genebra

As convenções utilizam o status dos indivíduos para adaptar as proteções a vulnerabilidades específicas, prestando atenção particular a pessoas que se encontram fora do alcance protetor de seus próprios governos. O exemplo mais claro talvez seja o regime aplicável a prisioneiros de guerra (PDG) conforme consagrado na III Convenção de Genebra, elaborada com o intuito primordial de proteger os membros das forças armadas, onde quer que eles se encontrem, uma vez sob o poder de um Estado inimigo. Como esses prisioneiros ficam desarmados e deixam de representar uma ameaça, a III Convenção obriga as potências detentoras a tratá-los não apenas de forma humana, mas também em consonância com seu papel de combatentes que pertencem a um Estado e merecem “respeito por sua pessoa e honra”.

Os Estados formularam a III Convenção para prevenir a recorrência dos horrores cometidos contra PDG no passado e, também, para proteger os combatentes de um tratamento que atribuísse motivações individuais a eles ou que considerasse que fizeram algo de errado simplesmente por terem participado das hostilidades. Os PDG não podem ser sujeitos a nenhum tipo de interrogatório coercivo e só estão obrigados a revelar seu nome, sua patente militar e seu número de matrícula às autoridades detentoras. Eles podem ser detidos em campos até o cessamento das hostilidades ativas, mas não podem ser encarcerados ou confinados nem tratados de nenhuma maneira como pessoas que cometeram um crime. Seu alojamento deve ser essencialmente idêntico àqueles disponibilizados para as tropas militares da potência detentora, e eles também têm direito a tratamento similar em outras áreas da vida. A III Convenção exige que as partes estabeleçam “departamentos nacionais de informação” para coletar e transmitir informações sobre PDG à Agência Central de Busca, uma estrutura permanente do CICV. Esse sistema ajuda a prevenir os casos de pessoas desaparecidas ao contabilizar aquelas sob o poder inimigo e ao disponibilizar informações de maneira digna às suas famílias.  A Convenção também trata de questões ligadas à transferência, repatriação e hospitalização de PDG em países neutros. Para promover a conformidade com suas normas, a III Convenção outorga ao CICV o direito de visitar livremente todos os locais onde houver PDG e de conduzir entrevistas com eles sem testemunhas.

A doutrina consuetudinária da “imunidade dos combatentes” inviabiliza qualquer tentativa de processar ou punir PDG combatentes por sua simples participação no conflito, independentemente de quantos soldados possam ter sido mortos ou feridos no campo de batalha. A legislação se vale da imunidade para incentivar a conformidade com essas normas: os PDG combatentes estão protegidos contra ações judiciais por atos lícitos de guerra, mas podem ser julgados por violações do DIH, especialmente caso se tratem de crimes de guerra. (Contudo, eles ainda têm direito a proteção como PDG durante o julgamento e eventual sentenciamento.)

O status de PDG contempla os integrantes das tropas militares de um Estado e de todas as outras forças armadas que lutem em nome do Estado, contanto que cumpram certos requisitos para se diferenciarem da população civil. Entretanto, o status de PDG não se limita aos integrantes das forças armadas; é comum que as forças militares tragam consigo civis não autorizados ao campo de batalha, e esses indivíduos também são contemplados pela III Convenção. O pessoal civil, os correspondentes de guerra, os fornecedores e todos os outros indivíduos que acompanhem as forças armadas, embora não sejam membros delas, correm um alto risco de serem detidos junto com os combatentes que forem capturados ou se renderem. Em reconhecimento dessa realidade, a III Convenção de Genebra garante que esses civis não fiquem isentos de um esquema de proteção claramente aplicável. A III Convenção de Genebra garante a proteção de todas as pessoas, inclusive cidadãos de outros países, que atendam aos critérios para enquadramento no status de PDG.

A população civil e a IV Convenção de Genebra

Quando se trata da população civil em termos mais gerais, a legislação também está cuidadosamente formulada de forma a contemplar os riscos específicos enfrentados por esses indivíduos. A IV Convenção de Genebra estabelece uma ampla série de proteções contra os perigos da guerra para a população como um todo, bem como medidas de proteção adaptadas a grupos específicos, como mulheres, crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência. Entretanto, a IV Convenção concentra-se principalmente no tratamento específico de estrangeiros em poder de uma parte em conflito.

As chamadas “pessoas protegidas” são aqueles indivíduos que se encontram fora do alcance protetor do governo de seu país de origem por serem de uma nacionalidade inimiga ou por serem incapazes de gozar das representações diplomáticas de seu Estado de origem por algum outro motivo. Os estrangeiros que se encontram em um país em guerra estão extremamente vulneráveis à detenção ou a situações mais graves, especialmente se forem provenientes de um Estado inimigo. A IV Convenção protege esses indivíduos contra a privação arbitrária da liberdade, o sentenciamento sem um julgamento justo, as punições coletivas, a exposição para fins de curiosidade, insulto e humilhação públicos, o homicídio e diversos outros males cometidos no passado. Ela estabelece o limite máximo de conduta lícita relativa aos civis estrangeiros que estejam em poder de um beligerante, inclusive nas circunstâncias excepcionais de guerra.

Ao mesmo tempo, a IV Convenção reconhece que nem todas as ameaças contra uma parte beligerante serão provenientes de tropas inimigas. A população civil também pode trazer riscos à segurança devido à sua participação em atividades como incitamento, espionagem ou sabotagem. Para tratar dessa realidade sem abrir as portas para o abuso, a Convenção deixa lugar para a imposição de medidas de segurança relativas a pessoas protegidas, contanto que elas sejam necessárias e mantenham a conformidade com as proteções estabelecidas pela Convenção. Atualmente, elas também teriam que estar em conformidade com as normas relevantes e aplicáveis do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Toda e qualquer medida de segurança desse tipo que resulte na privação de liberdade deverá ter caráter excepcional, temporário e não punitivo. A IV Convenção estabelece a “residência fixa ou internamento” como as medidas de controle mais severas que poderão ser impostas sobre uma pessoa protegida, com a condição de que outras medidas se mostrem ser inadequadas para prevenir uma ameaça imediata à segurança. O internamento de civis está sujeito à regulamentação estrita estabelecida pela IV Convenção, que garante que as condições de vida e o tratamento estejam em consonância com a natureza do internamento enquanto medida preventiva, e não como punição. A Convenção estabelece medidas de proteção processuais para prevenir a detenção arbitrária e limitar a duração do internamento ou da residência fixa ao período de tempo necessário para mitigar a ameaça. Conforme acontece com o regime aplicável a PDG, a Convenção concede ao CICV o direito de visitar todos os locais onde houver pessoas protegidas e de conduzir entrevistas com elas sem testemunhas. Além disso, ela exige que a Agência Central de Busca do CICV e os departamentos nacionais de informação dos Estados cumpram sua função de contabilizar as pessoas, prevenir os casos de pessoas desaparecidas e disponibilizar informações às suas famílias de maneira digna.

A IV Convenção, reforçada por normas vinculantes subsequentes, também é onde se estabelece a proteção jurídica de combatentes que não satisfazem os critérios para enquadramento no status de PDG. Todas as pessoas que tenham tido envolvimento nas hostilidades sem se encaixarem no escopo da III Convenção estão protegidas como civis pela IV Convenção (contanto que as exigências relativas à sua nacionalidade sejam cumpridas). Além disso, se forem iniciadas ações judiciais contra elas por suas ações, elas deverão ter direito a um julgamento justo de acordo com as disposições da Convenção.

É de suma importância observar que a incapacidade de atender às exigências relativas à nacionalidade estabelecidas na IV Convenção não significa que os civis em questão ficarão sem proteção. Pelo contrário, todas as pessoas em poder de uma parte em conflito gozam de garantias essenciais de acordo com o artigo 75 do Protocolo Adicional I às Convenções; uma disposição que, segundo amplo consenso, reflete o Direito Internacional Consuetudinário. Uma pessoa detida que não goze de proteções de acordo com nenhuma das Convenções de Genebra estará indiscutivelmente protegida por essa disposição contra uma série de abusos, entre eles homicídio, tortura, tratamento cruel e julgamento injusto. As normas aplicáveis do Direito Internacional dos Direitos Humanos também estabelecem medidas de proteção.

As Convenções enquanto um sistema jurídico

Assim como qualquer sistema jurídico, o DIH contém incentivos e desincentivos, permissões e proibições, que dão forma a um arcabouço normativo que conduz aos resultados desejados. Sendo assim, a III e IV Convenções de Genebra conferem status e proteções jurídicos de forma a promover os objetivos mais amplos das políticas.  As normas desencorajam o cometimento de crimes de guerra ao limitar a imunidade de um soldado combatente a atos lícitos de guerra. Elas reforçam a distinção entre combatentes e civis ao conceder o status de combatente apenas àqueles que servem no exército ou em forças comparáveis que satisfaçam critérios rigorosos. Além disso, elas incentivam a rendição em vez do massacre desnecessário por meio da promessa de condições dignas de internamento.

Ao mesmo tempo, as Convenções nunca recorrem à exclusão de nenhum indivíduo de sua categoria de proteção, independentemente de seus atos. Aqueles indivíduos que cometem crimes de guerra ou quaisquer outros atos que violem os princípios do DIH continuam estando protegidos pelas Convenções em suas relações com os beligerantes. Enquanto sistema jurídico, o DIH adapta os privilégios concedidos conforme necessário de forma a preservar as proteções essenciais garantidas a todas as pessoas afetadas por conflitos armados internacionais. Por mais nefastas que sejam as ações de um indivíduo do ponto de vista de seu captor, sua humanidade e dignidade sempre contarão com a proteção de uma das quatro Convenções de Genebra.

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