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Como o Direito Internacional Humanitário se desenvolve?

Uma edição recente da Revista Internacional da Cruz Vermelha dedicou o seu conteúdo a examinar uma questão aparentemente simples: “Como o Direito Internacional Humanitário se desenvolve?”, no qual aborda a história do Direito Internacional Humanitário (DIH), a sua situação atual e as perspectivas futuras.

No episódio desta semana de Humanidade em Guerra, a apresentadora do podcast, Elizabeth Rushing, analisa essas perguntas com Cordula Droege, diretora jurídica do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e chefe da Divisão Jurídica, e Eirini Giorgou, consultora jurídica da Unidade de Armas e Condução de Hostilidades do CICV, especializada, entre outros temas, em armas explosivas em áreas povoadas.

Cordula, comecemos por você, e com uma pergunta particularmente ambiciosa que lançará as bases para a nossa discussão. Na sua opinião quais foram alguns dos principais marcos do desenvolvimento do DIH e aonde eles nos levaram?

Cordula: Sim, obrigada. Então, é uma questão ambiciosa porque, como sabemos, o desenvolvimento das normas da guerra, do direito humanitário, existe desde que as guerras existem. Desde tempos imemoriais, sempre houve normas para limitar a guerra. Mas, em poucas palavras, a história do Direito Internacional Humanitário moderno pode ser contada a partir de cinco marcos fundamentais. E depois, talvez, em uma nova era de elaboração de tratados.

O primeiro marco seria a Primeira Convenção de Genebra de 1864, que versava sobre a proteção de soldados feridos no campo de batalha. A ideia era que todos os combatentes mereciam ser tratados com humanidade e receber cuidados médicos, independentemente do lado em que estivessem.

O segundo acontecimento seriam as Conferências de Paz de Haia, em especial a de 1907, cuja finalidade era abordar a construção da paz. Mas, à margem dessas conferênciasse você preferir, ou talvez exatamente no centro delas, estava também a questão de regular a guerra. E assim temos os Regulamentos de Haia de 1907, que continuam relevantes nos dias de hoje. Eles procuraram limitar os efeitos da guerra em parte sobre a população civil, em parte também no território ocupado, e em parte sobre prisioneiros de guerra. As normas são muito limitadas ainda, mas foram um marco importante naquela época.

O terceiro marco é, naturalmente, a Primeira Guerra Mundial. Houve entre oito e nove milhões de prisioneiros de guerra nesse conflito, e o CICV os visitou, conheceu a sua difícil situação, viu que precisavam estar em contato com as suas famílias, que precisavam de alimentação adequada, abrigo, etc., e que não havia disposições no direito internacional regulando tudo isso. Assim, no final da guerra, o CICV propôs uma convenção internacional para a proteção dos prisioneiros de guerra. Já naquela época, o CICV também constatou o sofrimento das pessoas civis, as aldeias civis destruídas, as mortes, os fluxos de pessoas refugiadas, e tentou também obter proteção para as pessoas civis em conflitos armados, mas não conseguiu.

Depois veio a Segunda Guerra Mundial, com todas as baixas civis e militares, e todo o sofrimento que deixou. Após a Segunda Guerra Mundial, em 1949, os Estados se uniram e atualizaram as primeiras Convenções de Genebra, que eram duas até então. O tema central foram os combatentes feridos e enfermos em campanha e no mar, mas depois os Estados também atualizaram a Convenção relativa aos prisioneiros de guerra. Algo muito importante, também um marco, foi que também aprovaram a Quarta Convenção de Genebra, relativa à proteção das pessoas civis em tempos de guerra. Além disso, os Estados adotaram um artigo em todas essas Convenções para regular a guerra civil, algo que não havia sido feito até então, pois era visto como uma questão de direito interno dos países.

Por um lado, após a Guerra Civil Espanhola, mas tendo em vista também as guerras já em curso, havia na década de 1940 um sentimento de que a guerra civil também deveria ser regulada. Mas esse sentimento foi contido pelos Estados, do mesmo jeito que a proteção de pessoas civis foi contida pelos Estados. Também naquela época, o CICV tentou proteger a população civil da chamada “condução das hostilidades”, isto é, dos combates, dos bombardeios, dos ataques aéreos, da destruição das cidades, etc. Em 1949, no entanto, os Estados não estavam preparados para isso. Não estavam prontos para se limitar e rejeitaram a iniciativa.

Quase 30 anos mais tarde, isso levou ao quinto marco: os Protocolos Adicionais às Convenções de Genebra de 1977. Por um lado, abordou-se pela primeira vez de forma adequada a chamada “condução das hostilidades”, limitando as operações militares para proteger civis contra os seus efeitos. Por outro lado, com o segundo Protocolo Adicional, ampliou-se a proteção de pessoas em situações de conflito armado não internacional, o que muitas vezes é chamado de “guerras civis”.

Nesta nova etapa no desenvolvimento dos tratados, iniciada em 1977, ainda havia muitas lacunas. O CICV e outros atores na época propuseram que houvesse uma convenção específica para armas, o que deu origem à Convenção sobre Proibições ou Restrições ao Emprego de Certas Armas Convencionais de 1980, com seus respectivos Protocolos. A ideia era que fosse uma convenção-quadro que permitisse aos Estados adicionar protocolos à medida que as armas fossem desenvolvidas para limitar os seus efeitos e o seu uso, ou mesmo proibi-las. Um desses protocolos proíbe armas laser cegantes.

Assim começou realmente o que às vezes chamamos de era do desarmamento humanitário, que trouxe uma mudança: deixou-se de ver o desarmamento do ponto de vista das armas nucleares – uma perspectiva de relações internacionais de segurança – para ver as armas e o desarmamento através das lentes dos seus efeitos sobre as pessoas. Assim chegou-se à Convenção sobre a Proibição de Minas Antipessoal ou Tratado de Ottawa, à proibição de munições cluster e, mais recentemente, a conquistas como um tratado que limita o comércio de armas, inclusive quando há risco de violações dos direitos humanos e do direito humanitário. O exemplo mais recente, o Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares, também foi o resultado de uma perspectiva humanitária sobre os efeitos das armas nucleares e que entrou em vigor em 2021.

Vou parar por aqui. E essa é apenas a parte do desenvolvimento do DIH referente aos tratados. Podemos falar depois sobre outras maneiras nas quais o DIH se desenvolve.

Você leu a minha mente: é justamente sobre isso que eu gostaria de conversar. Como você observou muito bem, grande parte do que você menciona desde 1864 são tratados e convenções juridicamente vinculantes. No entanto, se observarmos os dias atuais e avaliarmos as tendências das últimas décadas, podemos ver que houve algumas normas não vinculantes que se tornaram, em alguns casos, o instrumento preferido para os Estados avançarem em termos de desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário. Você pode falar um pouco sobre isso?

Cordula: Sim, e eu diria três coisas para começar. A primeira é que nunca devemos perder de vista o tempo necessário para desenvolver o Direito Internacional Humanitário. Como disse, o CICV fomentou a aprovação de leis de proteção de pessoas civis desde a Primeira Guerra Mundial. E demorou muito tempo, quase 70 anos, para que um tratado abordasse devidamente esse tema.

Em segundo lugar, embora eu tenha contato em linhas gerais o desenvolvimento do DIH em função de tratados, ele se desenvolve de muitas maneiras diferentes. Uma das principais é o que chamamos de Direito Internacional Consuetudinário, que é o direito que os Estados aceitam como vinculante para si mesmos porque expressaram uma opinião jurídica de que é vinculante e porque há uma prática estatal a esse respeito. Esse direito é influenciado por muitos fatores: pela jurisprudência de tribunais internacionais e nacionais, pela prática do Estado que acabamos de dizer e também por esses instrumentos não vinculantes, por trabalhos acadêmicos, entre outros, que são incorporados ao Direito Internacional Humanitário e que, às vezes, com o tempo e em alguns casos, também podem passar a ser considerados vinculantes.

O exemplo clássico é a jurisprudência do tribunal para a ex-Iugoslávia sobre conflitos armados não internacionais, que preenche muitas das lacunas que ainda existiam no direito convencional sobre o tema, até mesmo coisas básicas como os princípios de distinção, proporcionalidade e precauções, que não estavam suficientemente propostos e que agora são aceitos como consuetudinários mesmo em conflitos armados não internacionais.

Outro instrumento não vinculante digno de menção é o Manual de San Remo aplicável aos conflitos armados no mar, que também data de 1994. Trata-se de um documento não vinculante em si, mas que, na ausência de normas muito claras ou atualizadas, tornou-se a principal referência normativa sobre o tema.

Dito isto, há também normas não vinculantes que assim permanecem até o momento. Um exemplo é o Documento de Montreux sobre empresas militares e de segurança privadas, que tem uma parte dedicada a boas práticas. Claro que as boas práticas não foram pensadas para se transformarem em normas juridicamente vinculantes; foram pensadas simplesmente para serem boas práticas na implementação da lei. Outro exemplo são os Princípios e Orientações de Paris sobre crianças associadas a forças armadas ou grupos armados e os Compromissos de Paris para proteger as crianças contra o recrutamento ou a utilização ilegais por forças armadas ou grupos armados, que também não são vinculantes, mas têm sido muito utilizados em situações de conflito armado para orientar a prática dos Estados. Temos também a Declaração de Escolas Seguras, um compromisso político dos Estados para impedir que as escolas sejam usadas para fins militares. Isto amplia um pouco o que a lei exige para garantir uma educação segura. E temos a Declaração política internacional sobre armas explosivas em áreas povoadas, adotada em junho do ano passado como parte desses compromissos políticos dos Estados.

Esses documentos podem ser muito valiosos, pois costumam oferecer orientações práticas e detalhar quais são as obrigações jurídicas, ajudar os Estados a implementarem essas obrigações ou mesmo a ampliá-las – como no caso da Declaração sobre Escolas Seguras. Então, nem todas as medidas práticas são obrigatórias sempre, mas podem ser em certos momentos. O que esses documentos fazem é detalhar quais são as obrigações dos Estados, ajudá-los a cumpri-las e fomentar um maior respeito pelo Direito Internacional Humanitário, neste caso, ou melhor proteção da população civil.

Agora pergunto a você, Eirini, com este pano de fundo em mente. Essa tendência, nas últimas décadas, de um movimento geral em direção a normas não vinculantes que adquirem caráter jurídico desenvolveu-se naturalmente ao lado de uma segunda tendência: um ambiente geopolítico no qual é cada vez mais difícil chegar a acordos multilaterais concretos. Ainda assim, você fez parte de um caso de sucesso muito importante, apesar do contexto bastante pessimista: a Declaração de Dublin sobre o uso de armas explosivas em áreas povoadas. Poderia nos falar sobre esse acordo e descrever o caminho que levou à assinatura, em termos de processo e iniciativas políticas?

Eirini: Sim, claro. Como você disse, a Declaração constituiu um marco tanto no que diz respeito ao conteúdo como ao processo. Substancialmente, é o primeiro instrumento que obriga os Estados a restringirem ou se absterem do uso de armas explosivas em áreas povoadas onde tal uso possa causar danos civis. E isso, por si só, é inovador. Não é todo dia que os Estados concordam em se autolimitar no uso da força em conflitos armados.

Cordula comentou sobre todo o tempo que o DIH demorou para se desenvolver em termos de restrições de armas. Isso sem falar de quando a restrição se aplica não apenas a um ou dois tipos de armas, mas a uma categoria inteira, como as armas explosivas. A Declaração foi adotada até agora por 83 Estados de quase todas as regiões do mundo, incluindo grandes potências militares, o que por si só já é um resultado surpreendente. Claro que é um instrumento político, não um tratado; não visa criar novas normas jurídicas nem reinterpretar o direito. Seu objetivo é facilitar o respeito ao DIH e fortalecer a proteção da população civil por meio de compromissos políticos e medidas práticas.

Foi necessário percorrer um longo caminho para chegar a esse resultado. Tive o privilégio de participar deste processo diplomático, que durou quase três anos desde o momento em que foi formalmente lançado. Assim costuma ser a diplomacia multilateral. As coisas levam tempo e, como você pode imaginar, esse não era um tema simples. Muitos Estados relutaram em estar de mãos atadas e adotar restrições e limitações ao uso de armas que constituem a maior parte dos seus arsenais militares. Devo admitir que, quando comecei a trabalhar nesse tema, há mais de cinco anos, o resultado que temos agora – um texto forte com sólido apoio de mais de 80 Estados – era realmente difícil de prever.

Olhando para trás, creio que houve diversos elementos que contribuíram para essa conquista, e é de fato útil fazer esse exercício quando projetamos processos futuros que podem ocorrer em relação a outras áreas do DIH. Se eu tivesse que identificar alguns fatores que levaram ao exitoso resultado, diria que o primeiro é a existência de um grupo comprometido e determinado de atores com ideias semelhantes – Estados, organizações da sociedade civil, organizações internacionais entre as quais estava o CICV, é claro – que se dedicaram a essa causa e estavam dispostos a defendê-la, a manter o ímpeto e o nível das negociações.

Além disso, considero que também foi fundamental a liderança exemplar da Irlanda, que esteve à frente do processo ao longo desses três anos e conduziu uma negociação aberta, transparente e inclusiva. Especialmente para envolver certos Estados muito influentes que se mostravam bastante céticos em relação a esse esforço. O caráter informal das negociações também ajudou, a ponto de serem chamadas de “consultas”, apesar de serem negociações na prática. Isto propiciou uma maior flexibilidade entre os Estados e um maior compromisso.

O CICV acompanhou esse processo desde o início. Creio que desempenhamos realmente um papel fundamental, não só contribuindo com a nossa experiência humanitária e jurídica e com a nossa experiência de trabalho no contexto da guerra urbana e das suas consequências, mas também insistindo em manter o nível elevado dos compromissos. Durante todo o processo, apelamos aos Estados para que se comprometessem a evitar o uso de armas explosivas pesadas em zonas povoadas. E o que conseguimos foi surpreendentemente muito próximo disso.

Pode haver um último fator – como costuma acontecer, alguns elementos externos podem influir bastante em processos desse tipo. Neste caso, o que vimos foi que o conflito armado internacional entre a Rússia e a Ucrânia, altamente midiático, expôs o sofrimento da população civil sob intensos bombardeios aos olhos da comunidade internacional, incluindo os Estados. Eu diria que esse conflito foi, sem dúvida, um fator de pressão para que muitos Estados respaldassem a Declaração, pois eles viram claramente a sua relevância. Viram a magnitude do problema, que, claramente, nós e outros vimos em muitas outras partes do mundo, do Oriente Médio ao Afeganistão, passando pela Somália e outros lugares.

Portanto, eu diria que definitivamente aprendemos muitas coisas com esse processo e seu resultado positivo que valeria à pena replicar em outros processos.

Obrigada, Eirini, por esse resumo e por seu trabalho árduo durante os três anos prévios à Declaração de Dublin. E parabéns, mais uma vez, por fazer parte dessa enorme conquista.

Não me aventurarei a dizer que você acabou de traçar a fórmula do sucesso, mas certamente há algumas lições concretas aprendidas com esse processo. Cordula, considerando esse evidente caso de sucesso da Declaração de Dublin e o processo que Eirini acabou de descrever, vejamos agora outras questões urgentes do Direito Internacional Humanitário nos conflitos armados contemporâneos. Você poderia mencionar outras áreas ou outros campos do direito que poderiam se beneficiar de algumas das lições aprendidas com o processo de Dublin sobre armas explosivas em áreas povoadas?

Cordula: Sim. A título de introdução, deixem-me dizer algo sobre como pensamos o desenvolvimento do direito e se o direito deve ser desenvolvido. Acho importante dizer que sempre partimos de uma questão humanitária ou uma preocupação humanitária: há algum problema humanitário que vemos nas nossas operações e que sentimos que precisa de ser trabalhado ou que pode se manifestar no futuro? E, em caso afirmativo, o Direito Internacional Humanitário atual o aborda?

Isso pode ser de forma direta e explícita, ou através da interpretação do direito vigente. Do contrário, se houver uma lacuna, só então devemos começar a nos perguntar se é preciso continuar desenvolvendo o direito. A propósito, em virtude dos Estatutos do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, o CICV tem um mandato de preparar o desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário.

Há um pressuposto de que o Direito Internacional Humanitário sempre se desenvolverá, de que nunca permanecerá estável. Então devemos nos perguntar o que é factível, o que podemos fazer. Às vezes pensamos que talvez devêssemos esclarecer mais o direito e consolidar um pouco a proteção conferida às pessoas contra certas armas, certos comportamentos, etc. Outras vezes, podemos considerar que é necessário que o direito seja mais forte, mas que provavelmente não consigamos alcançar essa meta, ou que possamos até ter um retrocesso na proteção conferida pelo direito atual. Ou podemos pensar que existem outros caminhos a seguir, e que talvez os compromissos políticos, as boas práticas e outros documentos desse tipo podem trazer avanços na ausência de um desenvolvimento do direito.

Às vezes, pode nos parecer que o risco humanitário é tão sério que o direito atual é insuficiente, seja porque há lacunas – porque não proíbe ou não limita – ou porque os Estados o interpretam de maneiras tão pouco claras que o tornam pouco eficaz. Foi o que nos aconteceu, por exemplo, com as armas nucleares: considerávamos que era uma questão humanitária tão fundamental que exigia um tratado que proibisse essas armas. Todo o Movimento da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho estava convencido, e foi para isso que trabalhamos.

Hoje, uma das áreas em que sentimos que precisamos de um novo tratado para limitar a nova tecnologia é a dos sistemas de armas autônomos, na qual consideramos que o direito é pouco preciso para cumprir sua função de proteção. Embora o direito claramente ofereça certa proteção e já limite os sistemas autônomos de armas, não responde a todas as questões éticas e sociais suscitadas por essas novas tecnologias.

Se considerarmos os sistemas de armas autônomos e outras questões desse tipo, eu diria que a Declaração sobre as armas explosivas em áreas povoadas nos deixou várias lições importantes. Mencionarei três. Uma delas é que, mesmo sem um tratado, você pode conseguir muito. Quando o processo importa, quando a declaração política pode colocar uma questão sobre a mesa, quando um documento como a Declaração sobre o uso de armas explosivas em áreas povoadas inverte o ônus da prova e inicia um processo no qual as forças armadas e os Estados devem prestar contas sobre como estão realizando operações militares – prestar contas não em um sentido jurídico, claro, porque, novamente, estamos na esfera política; mas sim prestar contas sobre o que acontecendo na guerra urbana –, isso pode ser muito valioso.

Em segundo lugar, o que aprendemos com a Declaração é que se pode usar uma linguagem forte e precisa, e às vezes mais do que acreditamos possível. É uma questão de trabalhar para isso, defender, argumentar, trazer as evidências para convencer e influenciar.

Em terceiro lugar, seja para um tratado ou para uma declaração, penso que uma lição importante é que o documento não é mais do que o ponto de partida e que só depois começa o trabalho de obter um amplo apoio. A Declaração sobre o uso armas explosivas em áreas povoadas tem 80 signatários, uma quantidade enorme, mas é claro que queremos muitos outros. Queremos que seja ainda mais forte. Portanto, a lição é trabalhar para conseguir apoio e depois trabalhar para implementar na prática.

Esse é o ponto decisivo, no qual precisamos trabalhar duro para manter o ímpeto, para ter as discussões práticas nos departamentos de defesa, com as equipes formuladoras de políticas, nas unidades de formação das forças armadas, etc. Também devemos levar isto em conta: temos o desenvolvimento do direito, e depois sempre precisamos levar em conta a sua implementação.

Voltando a você, Eirini, tenho duas últimas perguntas. Em primeiro lugar, falamos muito durante essa discussão sobre normas juridicamente vinculantes versus um “soft law”, por falta de uma descrição melhor. Qual é realmente a diferença entre direito e políticas quando falamos de minimizar os efeitos nocivos dos conflitos armados na realidade?

E a segunda pergunta, com base no que Cordula acabou de descrever, se estamos buscando implementar essas normas e padrões recém-desenvolvidos sobre armas explosivas em áreas povoadas, quais são esses próximos passos para fazer com que os Estados adotem a Declaração de Dublin e implementem as suas disposições?

Eirini: A diferença entre direito e políticas foi uma questão muito debatida. Durante as negociações da Declaração sobre uso de armas explosivas em áreas povoadas, houve muita discussão sobre se os Estados deveriam se comprometer a limitar o uso de armas explosivas meramente nos casos exigidos pelo DIH – isto é, nos quais isto já era uma obrigação jurídica existente – ou se deveriam se comprometer a restringir ainda mais o uso dessas armas, como uma questão de política, mesmo nos casos em que tal utilização poderia ser, em primeira instância, lícita.

Eu diria que, pelo menos até certo ponto, esse dilema direito versus políticas era um tanto artificial no contexto da Declaração sobre armas explosivas. Ignorou o simples fato de que um compromisso político de evitar, restringir ou abster-se do uso de armas explosivas em áreas povoadas facilitará, em essência, o respeito pelo direito. Isso se deve a que, em muitos casos, o DIH proibirá o uso de armas explosivas pesadas em áreas povoadas, se interpretado corretamente. Alguns Estados argumentaram que só fariam um uso lícito das armas explosivas em áreas povoadas quando fosse permitido pelo DIH, mas não esclareceram como interpretavam e implementavam o direito quando se trata dessas armas. Enquanto não houver clareza sobre isso, dizer que vamos utilizá-las de forma lícita não terá muito peso para garantir que a população civil será protegida e que o direito será respeitado.

Cumprir o DIH é crucial, não há dúvida sobre isso. Esse ponto deve ser fortalecido, especialmente quando as hostilidades ocorrem em ambientes desafiadores, como áreas urbanas ou outras áreas povoadas. Mas a pergunta aqui é o que significa fortalecer o cumprimento do DIH na prática. As forças militares muitas vezes implementam o direito por meio de políticas que, por sua vez, esclarecem o significado das obrigações jurídicas. Traduzem obrigações jurídicas em medidas concretas e práticas. As políticas podem ser normas de enfrentamento, diretrizes táticas e outros tipos de doutrina militar. E, certamente, são vinculantes para os seus destinatários, sejam comandantes, soldados ou outros funcionários. Há também muitos casos em que vemos graves danos civis ocorrendo por causa de ataques aparentemente lícitos. Não se trata, de forma alguma, de subestimar a importância do direito, mas sim de ilustrar que este nem sempre é necessariamente a resposta única nem definitiva. Por isso, considero artificial a dicotomia direito versus políticas. E acredito que, neste caso, as políticas ajudam a implementar o direito.

Para responder à sua última pergunta, a Declaração sobre armas explosivas não é, obviamente, o fim dos nossos esforços. As principais prioridades agora, como disse Cordula, são a sua universalização e a sua implementação plena e eficaz.

Há algumas razões pelas quais todos os Estados devem endossar esta Declaração, estejam ou não diretamente envolvidos na guerra urbana. A primeira é bastante simples: a urbanização da guerra é um fenômeno global, mas as consequências da urbanização da guerra também são igualmente globais. Se pensarmos nas pessoas deslocadas por conflitos armados, muitas vezes atravessando fronteiras, se pensarmos nos efeitos em cascata da interrupção de serviços essenciais devido a bombardeios e ataques, como o impacto na segurança alimentar, isso ultrapassa as fronteiras nacionais. Os efeitos do uso de armas explosivas pesadas em áreas povoadas não estão realmente contidos dentro das fronteiras do território que é o principal afetado. Os impactos repercutem no mundo todo.

Em segundo lugar, todos os Estados têm não só um interesse, mas também um dever de fortalecer o respeito ao DIH e fortalecer a proteção dos civis. E é precisamente isso que a Declaração pretende fazer.

E terceiro, o que a Declaração realmente faz é criar um padrão internacional de comportamento. Quanto mais Estados endossarem a Declaração, mais forte se tornará o padrão e melhor será o resultado para o cumprimento do DIH e, claro, para a sorte da população civil em todo o mundo.

Quando olhamos para a implementação, a própria Declaração prevê um mecanismo para monitorar a sua implementação. A primeira reunião no contexto desse mecanismo ocorrerá em 2024, em Oslo, mas os Estados já estão começando a trabalhar para revisar as suas políticas e práticas existentes e adaptá-las, ou pelo menos identificar lacunas e definir o que precisa mudar para que cumpram os compromissos que assumiram sob a Declaração política. Ano passado, publicamos um relatório histórico sobre armas explosivas em áreas povoadas com recomendações práticas pormenorizadas para as autoridades políticas e as forças armadas sobre as medidas que devem adotar para implementar aquilo a que chamamos uma “política de evitação”. Tais medidas permitirão que eles evitem o uso de armas explosivas pesadas em zonas povoadas. Essas recomendações podem ser muito úteis para os Estados na implementação da Declaração política em que se comprometeram a restringir ou abster-se do uso de armas explosivas em áreas povoadas. Continuaremos também, como fizemos durante muitos anos, dialogando de forma bilateral e confidencial com os Estados e as suas forças armadas, a fim de identificar boas práticas para reforçar a proteção da população civil na guerra urbana contra a utilização de armas explosivas. Isso inclui formas e medidas que permitam aos Estados evitarem o uso de armas explosivas pesadas em zonas povoadas, que é o que pedimos aos Estados e aos grupos armados não estatais há mais de uma década, e o que continuamos apelando a todas as partes de conflitos armados.

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