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O longo legado da guerra: a contínua importância das Convenções de Genebra 75 anos depois

Análise / Condução das hostilidades / Direito e conflito armado / Promover o respeito pelo DIH / Responsabilização / Séries especiais 16 mins read

O longo legado da guerra: a contínua importância das Convenções de Genebra 75 anos depois

Guerra da Indochina 1947-1954. Haiphong. Desembarque de prisioneiros de guerra libertados em Sam Son.

Este ano marca o 75º aniversário das quatro Convenções de Genebra de 1949. Em um contexto de mais de 120 conflitos armados no mundo todo, mais do que celebrar, esta data deveria nos fazer refletir: como foram elaboradas estas normas humanitárias agora universalmente aceitas? Hoje elas ainda são adequadas à sua finalidade?

Neste artigo, a assessora jurídica do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Ellen Policinski, analisa como as Convenções de Genebra são interpretadas e aplicadas atualmente, dando exemplos concretos dos Comentários atualizados do CICV. Prossegue investigando a crítica recorrente de que o Direito Internacional Humanitário (DIH) está de alguma forma desatualizado, analisando quem se beneficia da narrativa de que as Convenções de Genebra e o DIH em geral não são ferramentas jurídicas adequadas para reger os conflitos armados atuais.

A primeira Convenção de Genebra foi adotada em 1864, inspirada no ativismo do empresário suíço Henry Dunant e no trabalho do Comitê Internacional de Socorro aos Combatentes Feridos, que antecedeu ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). A Convenção foi concebida para proteger os membros feridos e doentes das forças armadas, assim como quem os recolhia e os cuidava. Ao longo do tempo, a Convenção de Genebra foi revista e atualizada quatro vezes – em 1906, 1929 e 1949.

As Convenções de Genebra foram elaboradas em 1949, após os horrores da Segunda Guerra Mundial. Como se vê claramente na história da redação, todos os envolvidos nas negociações foram de alguma forma impactados pela guerra – como diplomatas, combatentes, civis que viviam em território ocupado ou delegados do CICV ou da Sociedade da Cruz Vermelha ou do Crescente Vermelho tentando levar o alívio tão necessário.

Como são universalmente aceitas hoje, é fácil subestimar o quão inovadoras eram as normas estabelecidas nestes tratados naquela época, em particular as proteções da Quarta Convenção de Genebra para os civis. Olhando para as fontes contemporâneas, podemos perceber o impacto que esta última teve quando foi adotada. Em 1952, poucos anos após a sua adoção, Hersch Lauterpacht escreveu: “Enquanto as [primeiras] três Convenções meramente revisam e ampliam – embora em uma escala muito considerável – tratados já existentes, a quarta Convenção, a saber, aquela para a Proteção de Civis em Tempo de Guerra, cobre em muitos aspectos um terreno inteiramente novo, não tocado pelas Convenções da Haia.”

Lauterpacht também observou que as proteções proporcionadas pelo artigo 3º comum em conflitos armados não internacionais eram outra inovação: “A Convenção impõe determinadas obrigações mínimas de tratamento humano, mesmo em conflitos armados que não sejam de caráter internacional e ainda que as partes no conflito, que podem não ser Estados, não sejam partes na Convenção – um exemplo interessante de obrigações impostas sobre entidades que normalmente não são sujeitas ao Direito Internacional”.

Retrofuturismo? Aplicação de inovações da década de 1940 na década de 2020

Depois de 75 anos, alguns poderão questionar se estas Convenções, tão avançadas em 1949, continuam sendo relevantes nas guerras de hoje, que parecem muito diferentes da Segunda Guerra Mundial. Parte da resposta é que foram redigidas em termos suficientemente amplos para resistir ao teste do tempo. Os redatores estavam perfeitamente conscientes de que estavam criando documentos que precisariam durar. Durante as negociações, com frequência se referiram à necessidade de evitar a elaboração de disposições redigidas de forma restritiva.

Por exemplo, quando foram propostas normas mais detalhadas para regular a prestação de ajuda humanitária nos territórios ocupados, o CICV salientou que os conflitos futuros podem evoluir de formas inesperadas, propondo que “deveriam ser estabelecidos apenas alguns princípios gerais, elaborados em termos suficientemente elásticos para permitir que o trabalho de socorro seja realizado em todas as circunstâncias.” Os redatores também salientaram que não era certo que o modelo de prestação de ajuda que funcionou bem durante a Segunda Guerra Mundial pudesse ser bem adaptado a futuras situações de ocupação. Além disso, observaram que as Convenções de Genebra de 1929 tinham estado muito estreitamente relacionadas com os acontecimentos da Primeira Guerra Mundial, tornando-as difíceis de aplicar na Segunda Guerra Mundial. Em última análise, os redatores optaram, de fato, por textos que se tornaram os artigos 59-62 da Quarta Convenção, que contém regulamentos relativamente gerais que permitiam desenvolvimentos futuros que talvez não tivessem sido capazes de prever.

Outra parte da resposta advém do fato de os Estados terem interpretado e aplicado as Convenções de Genebra desde sempre, demonstrando que os seus termos são suficientemente elásticos para permanecerem relevantes em um mundo dinâmico. As interpretações dos Estados levaram necessariamente em conta os desenvolvimentos na tecnologia, na legislação, no conhecimento médico e nas normas sociais. Por exemplo, as tecnologias de comunicação – e em particular as redes sociais – evoluíram de formas que os redatores não poderiam ter previsto. Isto tem implicações para a obrigação de proteger os prisioneiros de guerra e proteger os civis da curiosidade pública, por exemplo.

Pela mesma razão, a forma mais rápida de correspondência com e em nome de prisioneiros de guerra e outras pessoas protegidas já não é o telegrama, como previsto pelos redatores. Podem ser utilizados meios de comunicação mais modernos, embora ainda sejam enviados cartas e cartões. Do mesmo jeito, a forma mais rápida de se comunicar com os Escritórios Nacionais de Informação e com a Agência Central de Busca, incluindo informações sobre pessoas mortas, será provavelmente eletrônica, embora também deva ser considerada a segurança das informações e se apliquem normas de proteção de dados às informações pessoais recolhidas e transmitidas segundo as Convenções de Genebra.

As Convenções de Genebra também são interpretadas e aplicadas à luz dos desenvolvimentos jurídicos desde 1949. Por exemplo, o desenvolvimento da jurisprudência no domínio do Direito Penal Internacional confirmou que os membros das próprias forças armadas de uma Parte se beneficiam das proteções contidas no artigo 3º comum.

Outro exemplo são os tratados negociados desde 1949 que proporcionam proteções específicas a grupos de pessoas também protegidos pelas Convenções de Genebra. Por exemplo, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, de 1979, que reforça a proteção das mulheres em conflitos armados, incluindo a proibição da discriminação contra elas. Todos os prisioneiros de guerra devem receber cuidados médicos adequados, que, no caso das mulheres prisioneiras de guerra, incluem cuidados pré-natais e pós-natais, quando necessário. A contratação de assessores de gênero pode ajudar os Estados a implementarem estas obrigações.

Da mesma forma, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2006, complementa as Convenções de Genebra para garantir que as pessoas com deficiência sejam adequadamente protegidas pelo Direito. Por exemplo, quando as partes em um conflito devem ajudar determinados civis expostos a graves perigos, as medidas que implementam devem ter em conta as pessoas com deficiência. Uma forma de fazê-lo é proporcionando-lhes abrigos temporários acessíveis para onde forem evacuadas.

Uma vez que os prisioneiros de guerra têm direito às mesmas garantias judiciais que os membros das próprias forças da Potência detentora, os desenvolvimentos no Direito Internacional (incluindo o Direito Internacional dos Direitos Humanos) dão mais substância às disposições da Terceira Convenção sobre garantias judiciais. Os desenvolvimentos na legislação em matéria de direitos humanos que protegem as crianças devem ser tidos em conta na sentença e no tratamento de crianças por infrações penais ou disciplinares.

Um exemplo de mudança na compreensão médica que muitos podem considerar surpreendente é a atitude em relação ao consumo de tabaco. Originalmente, os redatores das Convenções de Genebra consideravam o tabaco um produto alimentar e até postularam que teria um impacto positivo na saúde mental dos prisioneiros e detidos. Os conhecimentos médicos sobre os efeitos do tabaco tiveram impacto na forma como as disposições que permitem o uso do tabaco são interpretadas. Levando em conta os conhecimentos médicos atuais, a exigência de proporcionar um local de internamento seguro e saudável pode agora, de fato, limitar o consumo de tabaco. Outras considerações jurídicas e políticas nacionais ou internacionais, por exemplo a Convenção-Quadro da OMS para o Controle do Tabaco, também podem ser relevantes em relação ao local onde o tabaco pode ser consumido e por quem, por exemplo, estabelecendo uma proibição de fumar em edifícios públicos ou perto deles ou um limite de idade sobre quem tem permissão para ter acesso aos produtos do tabaco. As mudanças na compreensão social do gênero como uma construção tiveram um impacto na interpretação de uma variedade de disposições das Convenções de Genebra. Um exemplo é o requisito de igualdade de tratamento dos prisioneiros de guerra, que pode exigir que os prisioneiros sejam tratados de forma diferente de acordo com as suas necessidades específicas e quaisquer riscos que enfrentem devido ao seu ambiente. Os produtos de higiene feminina também devem ser disponibilizados às mulheres prisioneiras de guerra.

As mudanças na compreensão social da deficiência também tiveram impacto na interpretação e na aplicação de uma variedade de disposições. Historicamente, quase sempre, a deficiência é vista como um problema médico que necessitava de tratamento ou “conserto” e as pessoas com deficiência eram vistas como vítimas das suas deficiências que mereciam caridade. O Comentário atualizado se afasta desses enfoques e adota um modelo social e de direitos humanos informado pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a fim de chegar a uma interpretação mais inclusiva do Direito, considerando as diversas barreiras e riscos enfrentados por diferentes pessoas com deficiências.

Estes e muitos outros exemplos estão sendo trazidos à luz através do projeto em andamento do CICV para atualizar os seus Comentários sobre as Convenções de Genebra de 1949 e os seus Protocolos Adicionais de 1977. Estes exemplos demonstram como estes tratados fundamentais do DIH podem e continuam desempenhando um papel importante na gestão da forma como as guerras são travadas. Para que isso aconteça, é essencial que os Estados interpretem e apliquem o Direito de boa-fé e deem cumprimento ao objeto e à finalidade para os quais estas Convenções foram adotadas.

As Convenções de Genebra “funcionam”? Uma questão perene

Apesar dos exemplos de relevância contemporânea, alguns comentadores continuam olhando para a forma como as Convenções de Genebra são aplicadas na prática e dizem que não são eficazes. Na verdade, as alegações de que as Convenções de Genebra ou o Direito Internacional Humanitário (DIH), em geral, não “funcionam” assumiram uma forma ou outra nem bem a tinta da Convenção de Genebra de 1864 estava seca. Elas surgiram após a primeira aplicação da Convenção na guerra Austro-Prussiana de 1866. Naquela época, o CICV procurou contrariar as críticas ao publicar o primeiro Comentário do CICV em 1870.

Infelizmente, quase sempre que irrompe um conflito armado, há alegações de que o DIH não é adequado às guerras atuais, quer porque a natureza da guerra mudou fundamentalmente, quer porque existe uma ameaça existencial à segurança de um Estado que deveria servir de desculpa para deixar de lado as normas de guerra estabelecidas, ou uma mistura de ambas.

Ambas as linhas de argumentação se baseiam em uma visão ingênua e romântica dos conflitos armados passados. Esta visão de um passado mítico de cavalaria ignora a capacidade da imaginação humana para a crueldade, como demonstrado pelos horrores vistos em guerras passadas. As coisas que são apresentadas como “novas” nos conflitos armados de hoje quase nunca são desprovidas de antecedentes históricos e foi precisamente para regular estas coisas que o DIH, incluindo as Convenções de Genebra, foi concebido. Olhando apenas para a Segunda Guerra Mundial, que foi o pano de fundo contra o qual foram negociadas as Convenções de Genebra de 1949, vemos o genocídio, a experimentação pseudomédica, o uso generalizado da tortura, a tomada de reféns, a destruição total das cidades de Hiroshima e Nagasaki por bombas nucleares, uma quantidade impressionante de violência sexual, a fome das populações civis, os maus tratos aos prisioneiros de guerra e o uso de escudos humanos.

Talvez estes acontecimentos ultrajantes tenham perdido o seu valor de choque décadas depois, mas não há dúvida de que foram horríveis. Os redatores das Convenções de Genebra viveram estes horrores — como soldados, diplomatas, humanitários –, tanto ocupados como ocupantes, foram testemunhas em primeira mão, foram detidos e deportados, procuraram asilo e perderam contato com familiares, alguns dos quais foram enviados para campos de concentração para nunca mais voltarem. Não eram ingênuos e certamente não tinham uma visão otimista do conflito armado. As Convenções que redigiram se basearam nas horríveis realidades da guerra, que não mudaram fundamentalmente.

Isso explica por que as Convenções de Genebra e o DIH continuam tendo impacto de forma mais ampla. O Direito é respeitado. Porém, ao ler ou assistir às notícias, isso não é aparente, porque é da natureza das notícias reportar apenas o que é anormal. Isso não quer dizer que o Direito nunca seja violado. É violado e esses casos devem ser discutidos. Mas dizer que a lei não “funciona” porque podemos apontar exemplos de irregularidades é um disparate. Assassinatos acontecem e inclusive ficam impunes, mas são poucos os que questionariam as leis que criminalizam o homicídio. Voltando às palavras de Hersch Lauterpacht: “As normas da guerra não são normas essencialmente que regem os detalhes técnicos e artifícios de um jogo. Elas evoluíram ou foram expressamente promulgadas para a proteção de vítimas reais ou potenciais da guerra.” Dito de maneira mais simples, o DIH é importante.

Como o CICV afirmou repetidamente: o que se necessita não são mais normas ou normas diferentes, mas, sim um melhor respeito pelas normas existentes, algo em que todos os Estados têm interesse. Isto não quer dizer que a aplicação perfeita das Convenções de Genebra levaria a um ideal mundo. O DIH é o padrão mínimo. Mas não percamos de vista o fato de que o DIH tem um impacto positivo na vida das pessoas, é amplamente aceito e continua sendo mais relevante hoje do que nunca.

Pensar criticamente: um apelo à ação no aniversário de 75 anos das Convenções de Genebra

As afirmações gerais de que o DIH já não “funciona”, quando feitas de forma acadêmica, podem parecer inócuas, mas quando essas mesmas afirmações são feitas pelas partes em um conflito armado, não são assim. Uma afirmação de que o Direito não “funciona” é uma afirmação de que a lei não se aplica a eles; que não precisam aderir às normas concebidas exatamente para a situação em que se encontram ou que têm o direito de agir de uma forma incompatível com a sua própria humanidade e em detrimento da humanidade dos outros.

Estas alegações são insidiosas e colocam em risco a eficácia do Direito, ao darem a falsa impressão aos que dão e cumprem ordens de que não precisam aderir às normas da guerra, e ao alimentarem a retórica política de quem ocupa posições de poder de que não devem se sujeitar a restrições às quais os seus oponentes não aderem. Igualmente destrutivas, as alegações de que o Direito é ineficaz podem minar a força de vontade de quem trabalha diligentemente para promover e aumentar a sensibilização para o DIH e de quem trabalha para garantir que o Direito seja cumprido.

A pergunta que nós, como cidadãos globais responsáveis, devemos fazer é: quem se beneficia se pensarmos desta forma?

Certamente não são as populações afetadas pelos conflitos armados. O DIH proporciona salvaguardas importantes para as pessoas feridas ou doentes, prisioneiros de guerra e civis. Também proporciona garantias para quem busca prestar ajuda humanitária. Como o CICV observou anteriormente, “o DIH é um conjunto de normas cujos princípios básicos, se aplicados de boa-fé e com a vontade política necessária, continuam servindo o propósito pretendido – que é regular a condução da guerra e, assim, aliviar o sofrimento causado pela guerra.”

Especialmente por ocasião do aniversário de 75 anos das Convenções de Genebra – os principais tratados do DIH –, cabe a cada um de nós pensar criticamente sobre as alegações de que o DIH não está funcionando, por qualquer motivo. Portanto, da próxima vez que você ouvir ou ler a alegação de que o DIH não funciona, ou de que as violações do DIH não são o tipo mais grave de crime internacional, pergunte-se o seguinte: quem se beneficia?

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