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Magia negra, zumbis e dragões: uma história do DIH no século 21

O ano de 2019 marcou o aniversário de 70 anos das Convenções de Genebra e eu gostaria de aproveitar para explorar alguns dos desafios que o Direito Internacional Humanitário (DIH) está enfrentando; desafios que são ao mesmo tempo antigos e modernos, místicos e pragmáticos. Para isso, precisamos olhar tanto para trás como para frente — apesar de todas as incertezas do futuro. Setenta anos depois, nós do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) acreditamos fortemente que temos as ferramentas básicas para continuar instando a que haja um espaço para a humanidade durante os tempos de conflitos armados.

Magia negra: os poderes protetores do DIH

Quando eu era uma jovem delegada jurídica em missão à Papua Nova Guiné, tive uma discussão com o Ministro da Saúde, na qual eu insistia na criação de uma legislação para proteger o emblema da Cruz Vermelha. O Ministro, que também era um ancião chefe da tribo da região das Terras Altas, fez uma declaração notável. Afirmou que entendia o propósito de tal legislação e o emblema da Cruz Vermelha mais amplamente como “magia negra”, no sentido de que, se acreditamos nela e a protegemos, ela poderia nos proteger. Eu — em vez de refutar esse importante tomador de decisões com argumentos jurídicos — também vi a meta-mensagem de que o respeito pelo emblema traz proteção, muito parecida a antigos conceitos relacionados com a magia negra (ou talvez magia branca). Através desse prisma, encontrei força para iniciar uma conversa em um contexto que os meus interlocutores entendiam, ou pelo, menos se sentiam mais à vontade.

Na atual conjuntura global, muito tem sido escrito e falado sobre a morte de uma ordem baseada em normas internacionais, que o direito internacional – e em particular o DIH – pode ter perdido um pouco da sua “magia”. Sérias questões estão sendo levantadas sobre se essa ordem — em vigor há décadas, ou mesmo séculos — é de fato relevante hoje.

De muitas maneiras, nós (profissionais, acadêmicos, diplomatas e estudantes de direito internacional) somos os culpados por um discurso que às vezes beira o desespero. Traçamos o perfil das violações da lei, apontando corretamente a inaceitabilidade de aspectos do conflito moderno e expressando a nossa frustração. Estamos indignados com o fato de o trabalho significativo realizado nas últimas décadas em termos de aplicação da lei e processos penais internacionais não ter revolucionado o comportamento. Lamentamos, com razão, o fato de que, atualmente, seja quase impossível a criação de consenso no mundo todo para novas normas.

No entanto, precisamos ter certo cuidado para não criar e perpetuar uma narrativa destrutiva. Se só levantarmos a nossa voz quando o DIH não funcionar, o público em geral terá motivos para pensar que o sistema no qual acreditamos realmente não vale o papel em que está escrito. Quando não acreditamos na magia, ela não funciona.

Para enfrentar esse desafio, o CICV iniciou uma série de projetos para “mudar a narrativa do DIH”. Não vemos o mundo através de lentes cor de rosa. Nós, mais do que a maioria das pessoas, vemos o terrível sofrimento no campo de batalha moderno (com o seu escopo, extensão e número crescente de grupos armados alterados) e sabemos que o status quo não é tolerável. No entanto, também testemunhamos a implementação diária, o respeito e o uso do DIH e a diferença que ele faz.

Milhares de atos que demonstram respeito à dignidade humana ocorrem todos os dias, mesmo nas piores circunstâncias possíveis. O nosso banco de dados IHL in Action coleta estudos de caso de exemplos de conformidade com o DIH no mundo todo.

Também há mais informações sobre a conexão entre o cumprimento do DIH e a redução do sofrimento humano em outras áreas, como o deslocamento. Um estudo recente do CICV sobre o deslocamento em tempos de conflito armado demonstra o impacto do respeito pelo DIH. Temos os elementos e as partes de algumas das soluções para problemas que muitas vezes são percebidos como opressores, mas que podem ser, de fato, resolvidos.

A coleta de exemplos como esses nos permitirá articular melhor os benefícios imediatos e de longo prazo do respeito pelo DIH e, com o tempo, mudar a narrativa geral. O nosso relatório Roots of Restraint confirma a importância do treinamento entre portadores de armas para reforçar o respeito pelo DIH, mas também investiga como as normas formais e informais condicionam o comportamento de soldados e combatentes. Uma melhor compreensão da socialização (o processo pelo qual as normas e regras se tornam socialmente aceitas) e as razões políticas, éticas e socioeconômicas pelas quais as diferentes partes em conflito se comportam de determinada maneira podem nos ajudar a adaptar o nosso trabalho e garantir um maior respeito pelo DIH.

Embora seja importante enfocar as violações e a responsabilização, a implementação diária do DIH no terreno costuma ser esquecida. Para neutralizar isso, são necessárias mais pesquisas e diferentes maneiras de traçar o perfil da utilidade do cumprimento do DIH. Precisamos construir com base no sobre o impacto de exemplos de respeito e trazer de volta a crença na “magia” do DIH — pois se o respeitamos, é mais provável que este nos proteja.

Zumbis: discurso de desumanização

Outro desafio atual é o discurso que retrata as pessoas que praticam atos de terror como subumanos pessoas que não são dignas das proteções legais encontradas em normas bem estabelecidas. Na verdade, de muitas maneiras, investimos contra aqueles que cometem atos de terrorismo e os transformamos em “menos do que humanos” — zumbis — que parecem humanos e quase agem como humanos, mas não são o que parecem. São os “mortos-vivos”.

Há uma infinidade de literatura sobre zumbis e eles têm uma história rica: do folclore vudu no Caribe a uma das primeiras histórias de ficção científica, Frankenstein. Mais recentemente, a famosa série de terror pós-apocalíptico The Walking Dead mostra os sobreviventes tentando se manter vivos sob a ameaça quase constante de ataque de zumbis estúpidos, conhecidos como “caminhantes”. Em partes desta série, há inicialmente uma profunda preocupação de que o “inimigo” esteja oculto, na forma de crianças pequenas, mulheres e outros que normalmente não são vistos no campo de batalha, mas estão envolvidos em atos violentos.

Na vida real, estamos testemunhando uma tendência alarmante de que alguns líderes desumanizam cada vez mais os adversários e empregam uma retórica demonizadora para indicar que os atores designados como “terroristas” não merecem as proteções do direito internacional, principalmente as proporcionadas pelo DIH. O desejo de não “trazê-los para casa” — referindo-se a combatentes estrangeiros e até mesmo às suas famílias (crianças que ficaram órfãs atrás das linhas inimigas) — é um símbolo do medo da falta de controle e quase de contaminação.

No equilíbrio entre os interesses de segurança e os imperativos humanitários, essa tendência se traduziu em abordagens jurídicas que, pouco a pouco, estão mudando o cursor para os interesses de segurança em detrimento das garantias legais que protegem a vida e a dignidade humanas em tempos de conflito armado. Ao argumentarem que os atores designados como “terroristas” não merecem a proteção do DIH, os proponentes dessa teoria estão construindo desculpas para combater o terrorismo de forma irrestrita. De acordo com o DIH, a designação de um grupo como uma “organização terrorista” ou cuja conduta são “atos terroristas” não têm absolutamente nenhuma relação com a aplicabilidade e aplicação do DIH. O DIH é claro no que diz respeito às obrigações para com as pessoas fora de combate, mesmo que sejam designadas como terroristas: as normas de proteção do DIH se aplicam a elas, sem exceções.

Por meio da nossa presença e proximidade com as pessoas afetadas no terreno e da condução das nossas operações humanitárias, o CICV testemunha em primeira mão a situação dos “combatentes estrangeiros” e das suas famílias. Vemos que as medidas de segurança tomadas contra “combatentes estrangeiros” são de diversos tipos e muitas vezes incluem a privação da liberdade em condições insatisfatórias, até mesmo desumanas, e processos que não necessariamente cumprem as garantias judiciais mais básicas. O impacto dessas medidas sobre os mais vulneráveis, incluindo crianças e as suas mães, assim como pessoas com deficiência, é preocupante.

Outra questão é o aumento do impacto das medidas de combate ao terrorismo na ação humanitária imparcial. As consequências de tais medidas podem ser de natureza fiduciária, jurídica/de conformidade, criminosa ou de reputação. É claro que os Estados podem ter preocupações legítimas sobre como garantir a segurança e eliminar o terrorismo. No entanto, as medidas tomadas em alguns casos — notadamente leis e sanções contra o terrorismo — podem criminalizar e restringir a nossa ação humanitária.

O que está em jogo é a nossa capacidade de cruzar as linhas de frente para prestar assistência humanitária a comunidades que vivem em áreas controladas por grupos armados e indivíduos designados como terroristas. As medidas de combate ao terrorismo podem impactar negativamente a nossa capacidade de visitar pessoas detidas pelo “outro lado”, recuperar cadáveres, treinar grupos armados no DIH e facilitar a liberação e trocas mútuas de detidos. Em suma, a nossa capacidade de cumprir o nosso mandato está cada vez mais prejudicada. Como consequência, as pessoas sofrem exatamente quando o DIH deveria protegê-las.

A Resolução 2462 do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre o combate e a prevenção do financiamento do terrorismo, aprovada por unanimidade em 28 de março de 2019, é um importante passo adiante. O Conselho decidiu que essas medidas de combate ao terrorismo devem ser implementadas “de maneira compatível com o DIH” e instou os Estados a levarem em consideração o efeito destas em “atividades exclusivamente humanitárias” realizadas por “atores humanitários imparciais” na hora de aplicar tais medidas. Este é um progresso acolhido com muita satisfação e que os Estados agora precisam implementar. Precisamos continuar enfatizando a questão de que as pessoas que estão “do outro lado” — sejam elas militares, atores armados não estatais ou mesmo aquelas acusadas de “terrorismo” — são seres humanos.

Dragões: nova tecnologia

Olhando para o futuro, existe a necessidade de uma maior reflexão sobre as novas tecnologias e o DIH, em particular o desenvolvimento de armas e meios de guerra. Embora os humanos continuem sendo extremamente inovadores no seu enfoque para encontrar novas maneiras de matar e mutilar, é importante lembrar que o DIH é um corpo jurídico vivo e, como tal, continuará proporcionando orientação sobre as áridas realidades da guerra. Hoje, o nosso desafio coletivo é encontrar maneiras de garantir um maior respeito pela lei dentro da dinâmica de mudança do conflito e os desafios que enfrentamos com as novas tecnologias. Obviamente, as novas tecnologias podem trazer grandes avanços para a humanidade, mas também representam dilemas.

Isso levanta questões de lei e ética. Como espectadora interessada de Game of Thrones, pensei que os episódios finais oferecem uma fascinante vista para o conflito, mesmo no “mundo de fantasia” criado pelo programa. Em relação aos métodos e meios de guerra, observar dragões cuspidores de fogo sobrevoando uma cidade densamente povoada, sem usar o princípio de distinção nem seguir a proibição de ferimentos supérfluos ou sofrimento desnecessário, me fez refletir mais amplamente sobre o poder das novas armas e o grau de controle humano. Embora ao longo da série os assassinatos em massa, tortura, abuso sexual e outros atos inaceitáveis sejam predominantes, o terrível sofrimento causado pelos dragões e o seu bombardeio aéreo finalmente demonstrou ser um ponto de inflexão para os personagens da história. O impacto desproporcional dos ataques a civis e àqueles que não participaram do conflito finalmente ficou claro.

As discussões atuais em nível internacional se concentram no estabelecimento de limites à autonomia nos sistemas de armas, de modo que os humanos mantenham o controle — e a responsabilidade — das decisões de uso da força em conflitos armados. As grandes potências estão investindo pesadamente em inteligência artificial (IA) para obter vantagens militares e uma possível “corrida armamentista” levanta preocupações de que novas tecnologias venham a ser implementadas sem a consideração completa dos riscos e das questões legais e éticas. O CICV vê, pelo menos, três grandes áreas com implicações significativas: armas autônomas habilitadas para IA; capacidades de guerra cibernética e informática; e sistemas de tomada de decisão.

Defendemos um enfoque centrado no ser humano e na humanidade para o uso de IA e aprendizado de máquina para garantir a conformidade legal e a aceitabilidade ética. Os sistemas de IA e aprendizado de máquina são ferramentas que devem ser usadas para aumentar — e não substituir — o julgamento humano em conflitos armados. O CICV continua pedindo limites acordados internacionalmente para garantir o controle humano sobre as armas e o uso da força.

Junto com a IA, o CICV também está preocupado com o potencial custo humano das operações cibernéticas. De fato, ataques cibernéticos proeminentes afetaram o funcionamento de redes de eletricidade, instalações médicas e usinas nucleares — um lembrete gritante da vulnerabilidade da infraestrutura civil essencial a ataques cibernéticos e das consequências humanitárias significativas que podem resultar.

No CICV, estamos principalmente preocupados com as operações cibernéticas que fazem parte do conflito armado e são usadas como meios e métodos de guerra. Na nossa opinião, as operações cibernéticas são regulamentadas pelo DIH quando usadas como parte de um conflito armado em andamento, de outra forma travado por meios cinéticos. Além disso, também é possível que o uso de operações cibernéticas por si só constitua um conflito armado e torne o DIH aplicável. Crucialmente, o IHL proíbe ataques cibernéticos contra objetos ou redes civis e proíbe ataques cibernéticos indiscriminados e desproporcionais.

Afirmar que a guerra cibernética deve respeitar as regras do DIH não é de forma alguma um incentivo para militarizar o ciberespaço, nem legitima a guerra cibernética. Para nós, o ponto-chave é que os limites impostos pelo DIH também sirvam para reger e restringir quaisquer operações cibernéticas às quais os Estados ou outras partes de um conflito armado possam recorrer. Na nossa opinião, é essencial que todos os Estados reconheçam claramente que o DIH se aplica às operações cibernéticas e estamos satisfeitos de ver que cada vez mais Estados estejam adotando essa visão.

Precisamos levar a discussão para o próximo nível e nos concentrarmos em como o DIH se aplica às operações cibernéticas. Embora as regras existentes se apliquem à guerra cibernética, a interconectividade das redes civis e militares apresenta um desafio significativo em termos práticos e legais para a proteção de civis contra os perigos que representa. Nesse sentido, os Estados devem trabalhar urgentemente as questões em torno da interpretação das regras do DIH levantadas pelas características únicas do ciberespaço. Devem avaliar se são necessários desenvolvimentos normativos mais específicos para complementar as normas gerais.

Conclusão

Setenta anos depois, sabemos que os redatores das Convenções de Genebra não pediram o impossível. Eles encontraram uma forma de escrever e desenvolveram obrigações que equilibravam cuidadosamente a necessidade militar e o princípio da humanidade. Hoje enfrentamos novos desafios — incluindo a falta de confiança na ordem baseada em regras, um discurso de “desumanização” crescente e rápidos desenvolvimentos tecnológicos em novos sistemas de armas. No entanto, as Convenções ainda são relevantes e altamente úteis. O impacto prático delas pode ser visto e sentido no terreno, onde são mais importantes, todos os dias. Contêm as ferramentas para nos ajudar a navegar por dilemas agora e no futuro. Finalmente, continuam defendendo com orgulho o conceito de que mesmo as guerras têm limites.

Veja também

Artificial intelligence and machine learning in armed conflict: A human-centred approach, CICV, 6 de junho de 2019

The potential human cost of cyber operations, CICV, 29 de maio de 2019

Autonomous weapons systems: an ethical basis for human control?, Neil Davison, 3 de abril de 2018

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