Em todo o mundo, as pessoas transgênero e outras pessoas que pertencem a grupos de minorias sexuais e de gênero se encontram, de forma desproporcional, em risco de violência e discriminação. As crises humanitárias como conflitos, desastres naturais e migrações em massa tendem a aumentar as vulnerabilidades às quais as pessoas transgênero estão submetidas. No entanto, elas foram excluídas da assistência humanitária por causa da sua identidade – a mesma característica pela qual são vítimas em primeiro lugar.

Para marcar o Dia Internacional da Visibilidade Trans, este artigo reflete sobre por que as necessidades exclusivas das pessoas transgênero foram anteriormente negligenciadas em crises humanitárias – e o que deve ser feito para lidar com essa omissão.

Em 2018, Roxsana Hernandez, uma mulher transgênero hondurenha de 33 anos, morreu enquanto estava sob custódia do Serviço de Imigração e Controle Alfandegário (ICE, na sigla em inglês) dos Estados Unidos, em Albuquerque, Novo México. Como muitas outras mulheres transgênero da América Central e do Sul, Roxsana havia solicitado asilo aos Estados Unidos, na esperança de uma vida melhor. Ela sofria assédio, violência e discriminação no seu país de origem e temia mais perseguições devido à sua identidade de gênero.

Os defensores dizem que Roxsana não recebeu atendimento médico adequado durante o período sob custódia. De fato, de acordo com a revisão institucional dos eventos que levaram à morte de Roxsana, ela foi transferida de um centro de detenção para outro, apesar de estar visivelmente passando mal. Os registros médicos e dos medicamentos que lhe foram prescritos aparentemente foram perdidos. Seu estado foi avaliado e documentado como ruim em várias oportunidades antes que ela pudesse ter acesso ao nível de assistência adequado. Ela morreu por complicações relacionadas ao HIV duas semanas depois de chegar aos Estados Unidos – o país no qual ela procurou refúgio.

Os perigos que enfrentam as pessoas transgênero

Em muitos lugares, as pessoas transgênero são, de forma desproporcional, vulneráveis aos mesmos tipos de danos que Roxsana enfrentou em Honduras. Elas podem ser marginalizadas pelo estigma social e cultural, que muitas vezes é codificado em regimes jurídicos hostis. Elas são frequentemente discriminadas e privadas do acesso a serviços de moradia, educação, emprego e assistência à saúde. A violência, incluída a violência sexual, contra pessoas transgênero é comum, e acredita-se que as mulheres transgênero têm mais de 49 vezes mais probabilidades de contrair o HIV do que a população em geral. Apesar de serem afetadas de forma desproporcional por questões de saúde como problemas de saúde mental, violência e doenças como HIV, as pessoas transgênero têm baixas taxas de acesso aos serviços de saúde, frequentemente devido ao medo e ao estigma.

Muitas das vulnerabilidades experimentadas pelas pessoas transgênero e outras pessoas que pertencem a grupos de minorias sexuais são exacerbadas durante as crises humanitárias, como durante conflitos, os chamados desastres “naturais” e migrações em massa. Existem muitos exemplos disso: pessoas transgênero foram submetidas à brutalidade policial perto do fim da guerra civil no Nepal; pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgênero (LGBT) foram brutalizadas no Iraque sob o ISIL, tanto por este último quanto por forças governamentais e outras milícias. Os ecos da violência sofrida por pessoas LGBT durante o conflito armado do Peru ressoam até hoje. Para piorar a situação, em tais crises, as redes de apoio social que fornecem segurança, moradia e meios de subsistência para pessoas desconformes com sua identidade de gênero ou sexual podem falhar. As pessoas LGBT foram até mesmo culpadas por ocasionar desastres como inundações e terremotos, o que as tornou bodes expiatórios para muitos e aumentou sua exposição à violência.

Infelizmente, a identidade de gênero de uma pessoa também pode levá-la a ser excluída da assistência vital em emergências. Isso parece acontecer especialmente quando são usados sistemas rígidos baseados em entendimentos normativos de gênero para decidir quem tem direito a proteção e ajuda. Após o tsunami no Oceano Índico em 2004, por exemplo, mulheres transgênero em partes da Índia foram privadas do acesso a abrigos temporários, porque sua aparência não correspondia ao gênero exibido nos seus documentos de identificação. A história se repetiu após o furacão Katrina, quando impediram a algumas mulheres transgênero acessar as acomodações temporárias no sul dos Estados Unidos. Foram registrados casos semelhantes de pessoas transgênero privadas de assistência por não terem documentos de identificação “aceitáveis”, por não terem condições de vida “aceitáveis” (por exemplo, morar em uma casa com crianças) ou simplesmente por não expressarem uma identidade de gênero “aceitável” em contextos após desastres tão diversos como Haiti, Nepal e Paquistão.

Simplesmente, as pessoas transgênero foram excluídas da assistência humanitária – que tem como objetivo beneficiar os mais vulneráveis – devido à mesma característica que as torna vulneráveis em primeiro lugar. O que poderia estar por trás dessa incapacidade das organizações humanitárias em cumprir seu objetivo principal: prestar ajuda aos que mais necessitam?

As necessidades das pessoas transgênero menosprezadas

Muitos tomadores de decisão de organizações humanitárias parecem estar operando com base na crença de que as pessoas transgênero constituem um número muito pequeno para merecer atenção. Pode haver duas razões para isto. Em primeiro lugar, são coletados poucos dados sobre as populações transgênero em contextos humanitários e outros. Isso torna difícil, e até impossível, saber quantas pessoas transgênero e outras pessoas que pertencem a grupos de minorias sexuais foram afetadas adversamente em crises humanitárias, seja por forças externas ou por políticas de exclusão dos próprios programas humanitários.

Em segundo lugar, e fundamentalmente, a invisibilidade pode ser uma estratégia deliberada utilizada por pessoas transgênero como um meio de alcançar e manter a segurança em sociedades onde são marginalizadas. Isso complica múltiplas facetas da prestação de ajuda, da coleta de dados à criação de um programa adequado. Como contar uma população que prefere não ser contada? Como fazer com que um serviço atinja beneficiários que, por causa da experiência de serem “atingidos” de outras formas mais nefastas, desejam ficar fora da vista?

Claramente, é necessária uma abordagem mais séria em relação ao gênero para cumprir o objetivo humanitário de servir àqueles que mais necessitam. Tal abordagem permitiria reconhecer e validar as experiências de pessoas transgênero e outras pessoas que pertencem a grupos de minorias sexuais e de gênero; oferecer a opção de compartilhar suas verdadeiras identidades com o pessoal; e garantir que sua dignidade e direito à privacidade sejam respeitados, caso assim o desejem.

Atender às necessidades das comunidades LGBTI em crise

Os esforços recentes no setor sugerem que houve algum reconhecimento em relação a isto. Por exemplo, a Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) atualizou suas políticas e emitiu orientações detalhadas  com o objetivo de garantir a proteção dos direitos de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgênero ou intersexo (LGBTI). A Organização Internacional para as Migrações lançou um a programa de treinamento sobre questões relacionadas para funcionários que podem trabalhar com pessoas LGBTI em crises humanitárias ou situações de deslocamento forçado. O Comitê Permanente Interinstitucional (IASC) trabalhou sobre considerações específicas para pessoas LGBTI em suas diretrizes sobre violência de gênero. Resta ver como essas diretrizes, políticas e estruturas serão traduzidas em ações e resultados – mas é um começo.

As necessidades exclusivas das pessoas transgênero em crises era um ponto cego para as organizações humanitárias. Isso pode ser, em parte, devido à falta de informações disponíveis sobre essas populações, além do fato de que a invisibilidade pode ser uma estratégia de sobrevivência deliberada para grupos marginalizados, incluídos aqueles que são não binários.

Poucos são tão marginalizados quanto as pessoas transgênero, como é ilustrado pela trágica morte de Roxsana Hernandez no mesmo lugar onde ela procurou refúgio de seus agressores. Para que as organizações humanitárias cumpram seus objetivos de proteger os mais vulneráveis, seus programas e pessoal devem estar capacitados para prestar assistência adequada a grupos de minorias sexuais e de gênero, sempre que o solicitem.

Enquanto isso, “longe dos olhos” não deve ser igual a “longe do coração”.

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