Em lugares como Gaza, Sudão e Ucrânia, a guerra urbana altera as infâncias de modo irreversível. No entanto, apesar da quantidade de crianças afetadas e do caráter crescentemente urbano dos conflitos armados, profissionais e responsáveis por tomar decisões ainda não têm uma boa compreensão sobre os danos causados especificamente às crianças. Para suprir essa lacuna, o CICV publicou em 2023 um novo relatório – Infância em escombros: consequências humanitárias da guerra urbana para crianças – com base na literatura existente, em 52 entrevistas com especialistas e na experiência direta da organização.
Neste texto, três dos colaboradores do relatório destacam oito maneiras – frequentemente ignoradas – pelas quais as crianças são afetadas pela guerra urbana e esboçam um conjunto de recomendações jurídicas, políticas e operacionais que Estados, grupos armados não estatais e organizações humanitárias poderiam implementar para que a proteção das crianças deixe de ser apenas uma palavra de ordem da imprensa e se torne uma prioridade política.
Constantemente a imprensa divulga imagens chocantes que retratam como a guerra devasta a vida das crianças nas zonas urbanas assoladas por um conflito armado. Embora poderosas, essas imagens não dão conta do impacto complexo e profundo que a guerra urbana tem sobre milhões de crianças. Além da destruição imediata, da violência e do caos, a guerra urbana também tem consequências duradouras que ficam invisíveis no avanço do ciclo de notícias.
Este texto aborda oito modos – frequentemente ignorados – pelos quais a guerra urbana afeta as crianças, com base na análise do recente relatório do CICV Infância em escombros: consequências humanitárias da guerra urbana para crianças. O relatório, que apresenta uma compreensão mais ampla dos muitos tipos diferentes de danos interconectados causados às crianças nas guerras em cidades, pode servir de base para elaborar respostas humanitárias mais específicas. Também faz um apelo para que as partes em conflito se empenhem mais para evitar que suas operações causem danos razoavelmente previsíveis às crianças.
#1: Os padrões de vida das crianças nas cidades são diferentes e mudam durante a guerra
Crianças e adultos vivenciam o conflito armado nas cidades de forma diferente. No labirinto de uma cidade durante a guerra, os simples atos de sair para brincar, comprar comida, buscar lenha ou ir à escola podem representar um enorme perigo. Como, em geral, as crianças são menores do que os adultos e as forças armadas sabem menos sobre os lugares que frequentam, elas podem passar desapercebidas mais facilmente e ser negligenciadas nas atividades de inteligência, vigilância e reconhecimento. Suas rotinas anteriores e os modos como costumavam circular pela cidade – muitas vezes centrados em escolas, parques e lares – são interrompidos, o que as expõe a riscos imprevistos e as desvia para lugares que antes não frequentavam. Elas são feridas ou mortas por explosivos, desabamentos de edifícios, minas terrestres ou franco-atiradores.
Os serviços básicos específicos para crianças – como centros de assistência obstétrica ou pediátrica e instalações educacionais – também sofrem: ao planejar e conduzir suas operações militares, as partes em conflito podem subestimar os bens de caráter civil que são essenciais para a vida e o desenvolvimento das crianças.
#2: A curiosidade natural das crianças e sua necessidade inerente de brincar e explorar as colocam em sério risco em ambientes perigosos
O Landmine and Cluster Munition Monitor informou em 2023 que as crianças representaram 49% das vítimas documentadas (quando havia registro da idade) de minas terrestres e resíduos explosivos de guerra e 71% das vítimas de resíduos de munições cluster (quando havia registro da idade e do tipo de arma). As crianças são naturalmente curiosas, e isso pode expô-las a riscos. No contexto da guerra urbana, elas podem ser propensas a pegar objetos coloridos ou intrigantes para brincar e a explorar edifícios abandonados. Esses edifícios danificados poderiam desmoronar ou esconder minas terrestres e restos explosivos de guerra, o que causaria mortes ou lesões devastadoras em um piscar de olhos.
Além disso, durante um bombardeio ou explosão, pessoas adultas costumam entender a necessidade de tentar se resguardar devido ao potencial de explosões secundárias ou desmoronamentos, mas as crianças talvez não saibam disso. Além do mais, elas podem entrar em pânico, ser deixadas para trás ou procurar abrigo em outro lugar da cidade e correr o risco de se separar de sua família.
#3: Armas explosivas causam um impacto particularmente brutal no corpo das crianças
As mesmas armas explosivas que ferem ou mutilam um combatente adulto podem matar uma criança com mais facilidade. Por terem menor porte e uma anatomia distinta – menor peso, paredes abdominais desproporcionalmente menores, órgãos internos comparativamente maiores, menos quantidade de sangue e o torso mais próximo do chão –, as crianças são mais suscetíveis a morrer por causa da violência de uma explosão. Devido a essas características físicas, as crianças que sobrevivem a uma explosão são mais propensas do que os adultos a ter estilhaços na cabeça, no pescoço, nos membros superiores e no tronco. As explosões também podem levar as crianças a perder membros ou causar-lhes deficiências sensoriais. Esses efeitos provocam consequências duradoras para a saúde e incapacidades que mudam o futuro de uma criança e seu caminho para a idade adulta.
Fornecer tratamento para crianças após um incidente com explosivos também é um desafio. É possível que as crianças estejam enfraquecidas devido à desnutrição, à exposição a condições de higiene deficitárias e ao abastecimento de água suja ou inadequada. As crianças tendem a precisar de mais assistência médica e procedimentos cirúrgicos do que os adultos após explosões, e o tratamento é ainda mais difícil por causa da falta de experiência pediátrica nas emergências (embora os profissionais de saúde contem com recursos valiosos, como o manual de operações sobre lesões pediátricas causadas por explosões).
#4: O impacto da guerra urbana pode deixar uma marca profunda e duradoura na saúde mental e no bem-estar das crianças
Pesquisas indicam que, em áreas afetadas por conflitos, mais de 22% das pessoas sofrem de problemas de saúde mental, o triplo da média global. O estresse intenso de vivenciar a guerra pode alterar a arquitetura do cérebro das crianças, que ainda está em desenvolvimento, o que poderia causar problemas cognitivos e emocionais, como transtorno de ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático e depressão. As crianças nunca esquecem a perda de seus animais de estimação, do lar ou dos amigos e vizinhos da infância. Ficam traumatizadas por testemunhar ou sofrer violência, lesões, mortes, separação familiar ou reverberações das dificuldades econômicas.
Crianças que vivenciaram um conflito armado ou deslocamento apresentam quadros de insônia, estresse, ansiedade, ataques de pânico, luto, enurese, medo de ruídos altos e pesadelos. A presença de aviões ou drones pode desencadear medo e gritos entre as crianças que associam esses sons aos bombardeios. Na pior das hipóteses, e sem apoio, crianças afetadas podem pensar em suicídio ou se automutilar, um reflexo do profundo impacto psicológico de viver numa zona de conflito.
#5: O acesso à educação é gravemente interrompido
Além dos ataques que danificam ou destroem escolas e matam estudantes e funcionários, a guerra urbana prejudica gravemente a educação das crianças de várias outras maneiras. Mesmo quando os professores permanecem e as escolas conseguem continuar abertas, chegar a elas em segurança pode ser impossível. O conflito armado afeta tanto os serviços básicos usados nas escolas, como eletricidade, água e aquecimento, quanto o transporte, o que complica ainda mais o acesso, especialmente para as crianças com deficiência. A escassez de recursos, as salas de aula e instalações danificadas e o deslocamento de professores atrapalham ainda mais o processo de aprendizagem.
As creches para crianças mais novas são afetadas de modo semelhante. Para as crianças mais velhas, a interrupção do cronograma de avaliações e as taxas de transição têm consequências duradouras, que afetam tanto o desempenho acadêmico quanto a formação e as oportunidades futuras. Por exemplo, a OCDE estimou que um ano de escolaridade perdida representa uma redução salarial de 7,7%; anos adicionais de escolaridade são sistematicamente associados a uma taxa de emprego mais alta.
As dificuldades para implementar a aprendizagem remota ou híbrida, estabelecer espaços educacionais temporários e conservar em segurança o histórico escolar tanto das crianças deslocadas quanto daquelas que ficam para trás podem ser complexas e onerosas de administrar, especialmente em contextos em que a infraestrutura educacional está destruída e não há uma conectividade confiável de rádio ou à internet. No entanto, essas soluções podem ser os únicos caminhos que restam para fornecer uma educação capaz de mudar vidas.
#6: Para as crianças com deficiência, os riscos são exacerbados
A guerra urbana afeta as crianças com deficiência de modo desproporcional. A mobilidade fica reduzida para todas as crianças, mas aquelas em cadeiras de rodas ou com deficiências sensoriais – como as auditivas ou visuais – enfrentam obstáculos ainda maiores, por exemplo, quando os elevadores não funcionam, as ruas estão obstruídas e os dispositivos de assistência estão quebrados. As crianças com deficiências auditivas ou visuais podem não conseguir ouvir alertas ou ver novos perigos, como edifícios danificados ou postos de controle que bloqueiam caminhos que antes eram seguros.
É provável que o apoio a crianças com deficiências intelectuais seja reduzido ou inexistente. Além disso, profissionais médicos e de reabilitação, que são cruciais para atendê-las, podem ser evacuados, deslocados ou talvez não consigam comparecer ao trabalho. Como parte da reconstrução de uma cidade depois de um conflito armado, é necessário um grande investimento em serviços técnicos, infraestrutura acessível e apoio a pessoas com deficiência.
#7: As experiências das crianças variam de acordo com o gênero
A experiência das crianças com a guerra urbana tende a diferir com base no sexo e no gênero. Uma pesquisa concluiu que meninos são mais propensos a serem afetados diretamente por armas explosivas, minas terrestres e restos explosivos de guerra devido ao modo como circulam pela comunidade. Eles podem sair para resolver algo para a família, encontrar amigos, coletar sucata ou vasculhar edifícios danificados que talvez estejam contaminados com armas. Os meninos também são mais propensos a serem alvo de ataques de atores armados, porque são mais comumente percebidos como uma ameaça à segurança do que as meninas.
As meninas também vivenciam impactos específicos por seu gênero nas guerras urbanas devido à desigualdade de gênero presente na maioria das sociedades. As diferenças de gênero no acesso à educação aumentam em situações de deslocamento; em certos contextos, meninas e mulheres enfrentam obstáculos para ter acesso à assistência médica por conta do gênero, como a falta de profissionais qualificadas. Embora a violência sexual e de gênero afete tanto meninas quanto meninos, o número de meninas afetadas é maior.
#8: Deslocamento e separação familiar são comuns
A dinâmica da guerra urbana, com constantes mudanças e movimentos das linhas de frente, aumenta o risco de que crianças se separem de seus familiares. Com frequência, crianças e famílias são forçadas a abandonar seu lar, seja por consequências diretas do conflito, como o objetivo de fugir da violência, ou por consequências indiretas, como o fechamento de escolas e a falta de acesso a serviços básicos. A destruição causada pela guerra urbana também impossibilita voltar à casa de modo seguro e digno, e as crianças de famílias deslocadas acabam crescendo no limbo.
As crianças podem perder o contato com a família em evacuações, na busca de refúgio durante ataques, na confusão do deslocamento interno ou ao atravessar fronteiras internacionais. Aquelas com deficiência e/ou em instituições como orfanatos podem ser negligenciadas nos planos de evacuação, o que agrava sua vulnerabilidade. O deslocamento pode reduzir o acesso das crianças a programas de vacinação e a outras intervenções de saúde em tempo hábil, o que leva a doenças e deficiências evitáveis que podem ter consequências para a saúde ao longo da vida da criança, da família e da comunidade.
Recomendações: é necessário agir para prevenir e responder a esse dano às crianças
Estados, partes de um conflito armado e atores humanitários fazem escolhas sobre o quê, quem e como priorizar seus recursos quando planejam e conduzem suas respectivas atividades em meio à guerra. Embora sejam mencionadas com frequência em comunicados públicos e fóruns multilaterais, muitas vezes as crianças não recebem a atenção específica de que precisam, devido à sua vulnerabilidade, quando as organizações tomam decisões. O capítulo 4 do relatório Childhood in Rubble propõe mudar esse status quo inadequado com recomendações específicas para cada um dos atores, resumidas aqui.
Apesar de serem detalhados e sólidos, o direito internacional e os regulamentos que protegem as crianças em conflitos armados são frequentemente violados e esquecidos. Parte do problema é que muitos Estados deixaram lacunas entre seus compromissos internacionais e seus quadros jurídicos internos. Os Estados precisam atualizar seus próprios quadros jurídicos para que eles correspondam às suas obrigações jurídicas internacionais, além de apoiar e adotar padrões mais elevados – como os princípios de Paris sobre crianças associadas a forças armadas ou grupos armados, as diretrizes para a proteção de escolas contra o uso militar e a Declaração Política sobre o Fortalecimento da Proteção de Civis contra as Consequências Humanitárias do Uso de Armas Explosivas em Áreas Povoadas (Declaração Política sobre Armas Explosivas em Áreas Povoadas).
Ministérios e outras entidades públicas afins devem elaborar planos de preparação para proteger as crianças e reduzir os riscos para elas em caso de hostilidades. Pode haver, por exemplo, planos de evacuação que contemplem crianças (com mensagens e refúgios adaptados para acomodar crianças) e políticas que projetem a continuidade da assistência pediátrica e do serviço educacional para evitar interrupções provocadas pelo conflito. Não se pode esquecer das crianças detidas: foi demonstrado que os planos para reduzir o número de crianças detidas a fim de mitigar os riscos relacionados à crise funcionam em emergências, e o UNICEF estima que mais de 45 mil crianças foram libertadas da detenção durante a pandemia de Covid-19 devido a boas medidas de preparação, entre outras razões.
Os atores armados devem elaborar uma doutrina específica e/ou adaptar a doutrina existente e os procedimentos operacionais padrão para que abordem especificamente a proteção de crianças em ambientes urbanos. Além disso, a conscientização sobre as necessidades específicas das crianças e os riscos que elas enfrentam deve ser incorporada ao treinamento militar. As pessoas envolvidas no planejamento de operações militares em áreas urbanas devem levar em conta especificamente a situação das crianças ao analisar as opções para evitar e/ou mitigar danos à população civil; algumas medidas úteis são implementar sistemas de rastreamento de vítimas civis, desagregados por idade e sexo sempre que possível, e incluir no planejamento consultores com experiência em proteção infantil.
Por fim, os atores humanitários também devem prever de forma mais sistemática os riscos enfrentados especificamente pelas crianças durante a condução das hostilidades em áreas urbanas. Assim, terão mais capacidade de prevenir e reduzir danos conforme as orientações existentes para trabalhar com crianças em emergências (como os padrões mínimos de proteção da criança, por exemplo).
O relatório também recomenda melhorar a coleta e a desagregação de dados de gênero, idade e deficiência, e garantir que a imprensa respeite a dignidade das crianças e que evite retratá-las se isso não for o melhor para elas.
Conclusão
Os enormes danos que a guerra urbana inflige às crianças recorda de forma cruel que é preciso conter as operações militares. Embora sobrem motivos para perder as esperanças, perspectivas de proteger melhor a vida das crianças existem. Talvez o mais importante acontecimento recente seja a adoção da Declaração Política sobre Armas Explosivas em Áreas Povoadas em 2022, que agora conta com o apoio de 87 Estados. A primeira conferência internacional para analisar a implementação desta declaração, realizada em Oslo, em 2024, ofereceu uma plataforma para considerar medidas concretas que priorizem a segurança e o bem-estar da população civil, incluindo as crianças, em zonas de conflito. A proteção das crianças foi mencionada por Estados e organizações humanitárias nas diferentes sessões, com foco na proteção de infraestruturas essenciais, inclusive aquelas usadas por crianças, e em medidas específicas que as forças armadas devem tomar para evitar, reduzir e mitigar os danos causados à população civil, inclusive aqueles que afetam as crianças. Em suas recomendações à Conferência, o CICV destaca a importância de medidas específicas para crianças nos itens 2.10.1, 5.4, e 5.9.
As imagens que a imprensa difunde de crianças em contextos de guerra urbana eternizam alguns dos momentos mais vulneráveis e traumáticos para elas e seus entes queridos. Embora essas imagens possam ajudar a aumentar a conscientização, devemos evitar reduzir as crianças a meros símbolos de um conflito, ofuscando suas histórias individuais e o apoio imediato e de longo prazo de que precisam.
É crucial equilibrar a necessidade de conscientização com a proteção, a privacidade e a dignidade que as crianças merecem. A melhor maneira de fazer isso é que Estados, portadores de armas, atores humanitários, comunidades, famílias e as próprias crianças analisem e debatam o que acontece especificamente com as crianças na guerra urbana, considerem os muitos fatores complexos e interseccionais que levam ao dano ou à proteção de forma holística, tomem medidas para minimizar e mitigar esse dano e apoiem a recuperação por meio de abordagens que considerem as crianças e suas necessidades em cada passo do caminho.
Veja também:
- Abby Zeith, Cidades cercadas e sitiadas: população civil encurralada em conflitos armados, 9 de setembro de 2024
- Laura Boillot, Laurent Gisel, Paul Holtom, Frederik Siem, Dina Abou Samra, Juliana Helou van der Berg, Protecting civilians in conflict: the urgency of implementing the Political Declaration on Explosive Weapons in Populated Areas, 22 de abril de 2024
- Ruben Stewart, Celia Edeline, The NSAG handbook: helping non-State armed groups reduce civilian harm during urban warfare, 30 de março de 2023
- Charles Deutscher, Chandni Dhingra, Presente e engajado: como o CICV responde a conflitos armados e violência nas cidades, 2 de fevereiro de 2023
- Paul Reavley, Bombs & blast waves: Why children in conflict need special care, 13 de setembro de 2018
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