Prevenir o desaparecimento de pessoas, esclarecer a sorte e o paradeiro de quem desapareceu e apoiar os seus entes queridos, inclusive na sua busca para saber o que aconteceu e por justiça pelas graves violações ao Direito Internacional Humanitário (DIH) e do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), são mais importantes do que nunca.
Nos dias que antecedem o Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimento Forçado, as assessoras jurídicas do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) Ximena Londoño e Helen Obregón Gieseken oferecem elementos-chaves sobre como a lei protege as vítimas de desaparecimentos forçados e outras pessoas desaparecidas, e sobre como o CICV contribui para o desenvolvimento global, regional e nacional mais amplo e esforços locais para prevenir e lidar com desaparecimentos forçados como parte do seu trabalho.
Em 30 de agosto, o mundo lembra uma ocasião importante para aumentar a conscientização sobre o trágico fenômeno dos desaparecimentos, colocando as pessoas desaparecidas de maneira forçada e as suas famílias no centro de importantes apelos à ação. É também um dia para reafirmar e invocar um maior respeito pelo DIDH, em particular pela Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado (ICPPED), e pelo DIH.
Ocupar-se da situação das vítimas de desaparecimento forçado e de outras pessoas desaparecidas é um desafio global e complexo. Atualmente, há mais de 210 mil pessoas registradas como desaparecidas pela Rede de Restabelecimento de Laços Familiares da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho – e isso é apenas a ponta do iceberg. No entanto, em muitos casos, os esforços para evitar o desaparecimento de pessoas – ou para encontrar quem desapareceu – sofrem com a falta de recursos, capacidades técnicas ou vontade política. Nenhuma pessoa ou organização pode resolver isso sozinha.
Esclarecer os termos
Para determinar as obrigações relevantes e adotar as respostas apropriadas, primeiro devemos ver de quem estamos falando. A noção de “pessoas desaparecidas”, embora não esteja definida no direito internacional, é encontrada em diferentes normas do DIH (aqui e aqui), referindo-se amplamente a pessoas desparecidas por motivos relacionados a um conflito armado, que inclui aquelas que desapareceram à força. No DIDH, a única definição internacionalmente aceita é a de “desaparecimento forçado”: em poucas palavras, a privação de liberdade por autoridades estatais ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com o envolvimento do Estado, seguida da recusa em reconhecer a privação de liberdade ou a ocultação da sorte ou paradeiro da pessoa desaparecida.[1]
Nas suas operações, o CICV entende “pessoas desaparecidas” como pessoas sobre as quais as famílias delas não têm notícias e/ou que, com base em informações confiáveis, foram dadas como desaparecidas em decorrência de conflitos armados, outras situações de violência ou qualquer outra situação que possa exigir a ação de um órgão neutro e independente (pg. 536). Esta noção inclui vítimas de desaparecimentos forçados.
No seu trabalho, o CICV pede atenção específica ao fenômeno dos desaparecimentos forçados. Por exemplo, condenou tais atos e instou os Estados a prevenirem e conduzirem investigações completas sobre tais casos.[2] O CICV também contribui para os esforços de Estados comprometidos e associações de famílias para tornar a ICPPED uma realidade e apoia a elaboração de algumas das suas disposições, principalmente sobre prevenção. O CICV também busca garantir o respeito a essas normas. Porém, a descrição de pessoas desaparecidas que usamos no nosso trabalho diário é mais ampla, de modo a garantir que todas as pessoas desaparecidas e as necessidades das suas famílias sejam consideradas. Por exemplo, abrange quem morre por motivos relacionados a um conflito armado e permanece desaparecido devido à incapacidade de recuperar os corpos ou identificá-los antes do enterro.
Análise do desaparecimento forçado no DIH e no DIDH
As pessoas que desapareceram de maneira forçada, outras pessoas desaparecidas e as suas famílias têm proteção do Direito Internacional. O desaparecimento forçado é uma violação do DIDH e do DIH, tanto em conflitos armados internacionais como não internacionais.
De acordo com o DIH, a proibição de desaparecimento forçado foi identificada como uma norma de Direito Consuetudinário. As obrigações do DIH relacionadas ao registro de pessoas privadas de liberdade apoiam ainda mais o dever de prevenir desaparecimentos forçados. Outras normas, inclusive aquelas relacionadas com o acesso do CICV às pessoas detidas, também podem contribuir para prevenir desaparecimentos forçados. A prática extensiva indica, ademais, que a proibição inclui o dever de investigar supostos desaparecimentos forçados.
É importante ressaltar que o DIH contém obrigações referentes à investigação e ao processo de crimes de guerra. O desaparecimento forçado consiste em vários crimes de guerra (explicação da Norma 156 do DIH Consuetudinário). O DIH também exige que as partes encontrem as pessoas dadas como desaparecidas em decorrência do conflito e deem às famílias quaisquer informações que tenham sobre a sorte e o paradeiro da pessoa desaparecida. Como observa o resumo desta norma, esta obrigação é consistente com a proibição de desaparecimentos forçados. A prática também indica que é motivada pelo direito das famílias de saber a sorte e o paradeiro dos seus familiares desaparecidos.
De acordo com o DIDH, a ICPPED estabeleceu um marco como o único tratado universal que reconhece o desaparecimento forçado como uma violação e as famílias como vítimas e titulares de direitos, inclusive para saber a verdade sobre as circunstâncias do desaparecimento, o progresso e os resultados da investigação, e sorte e o paradeiro da pessoa desaparecida. Também contém disposições críticas sobre a prevenção de desaparecimentos e a responsabilização. Trata de três eixos importantes: prevenção, busca e responsabilização.
A contribuição do CICV para esforços mais amplos sobre desaparecimentos forçados
O CICV trabalha para prevenir e combater o desaparecimento forçado como parte do seu compromisso com pessoas desaparecidas. Isso é parte integrante do seu mandato e da sua Agência Central de Busca (ACB), que está no centro dos esforços para proteger e restaurar os laços familiares, buscar pessoas desaparecidas e proteger a dignidade das pessoas mortas.
As visitas de detenção regulares do CICV contribuem para a prevenção de desaparecimentos forçados. O registro e o acompanhamento das pessoas privadas de liberdade e os esforços para restabelecer e manter o contato entre estas e as suas famílias são medidas de proteção fundamentais. O CICV também mantém um diálogo bilateral e confidencial de proteção com Estados e grupos armados não estatais no que se refere à proteção de pessoas detidas e outras separadas e sobre a prevenção do desaparecimento de pessoas, inclusive em decorrência de desaparecimentos forçados. Faz isso para influenciar comportamentos e padrões existentes, muitas vezes decorrentes de tendências sistêmicas. Reafirmar e exigir respeito às obrigações do DIH e do DIDH está no centro desse diálogo e do nosso trabalho político, juntamente com preocupações humanitárias mais amplas.
O CICV adota um enfoque abrangente para evitar o desaparecimento de pessoas, restaurar e manter os laços familiares, esclarecer a sorte e o paradeiro das pessoas desaparecidas, atender às necessidades das suas famílias e apoiar as autoridades e outros atores. Reúne serviços de proteção, forense, jurídico, saúde mental e apoio psicossocial, colocando as pessoas afetadas no centro. Por exemplo, quando os Estados tomam medidas para encontrar as pessoas desaparecidas — seja dentro de uma investigação criminal ou fora dela — o CICV presta assessoria técnica e recomenda que tais processos enfoquem adequadamente os inúmeros direitos e necessidades das famílias. Também procura garantir que se cumpram as leis, padrões e práticas internacionais relevantes — todos necessários para uma resposta eficaz e holística. Incentivamos os Estados a envolverem advogados, juízes, promotores, médicos forenses, psicólogos, assistentes sociais, parlamentares e políticos em conversas e na elaboração de medidas de apoio às famílias.
O CICV também oferece apoio jurídico e técnico para que os Estados promulguem leis e marcos regulatórios para implementar as suas obrigações internacionais, incluindo prevenir, responsabilizar, investigar e processar, conforme apropriado, desaparecimentos forçados e outros casos de pessoas desaparecidas. O CICV também procura garantir que todas as medidas adotadas cumpram com essas leis e marcos regulatórios. Como parte desse esforço, continua promovendo a ICPPED e a sua efetiva implementação doméstica. Ao traduzir o direito internacional em prática, as diferenças nos sistemas jurídicos significam que não existe um enfoque único para todos os casos. Isso exige adaptar as respostas à ordem jurídica nacional de cada Estado e enfocar a complexidade e a variedade de circunstâncias em que as pessoas desaparecem. Isso permitirá determinar as obrigações resultantes e procurar garantir que estas, incluindo os direitos das famílias à justiça e reparação, sejam plenamente respeitadas pelas autoridades responsáveis.
Por último, deve-se lembrar que a responsabilidade de reprimir crimes internacionais, incluindo desaparecimentos forçados, e fazer justiça às vítimas é dos Estados e, em alguns casos, das instituições judiciais internacionais. O CICV apoia as ações destinadas a responsabilizar os responsáveis por crimes internacionais. Contribui para esses esforços, lembrando as obrigações de investigar e processar violações graves do DIH e apoiando os esforços dos Estados para implementá-las.
No entanto, de acordo com o seu enfoque confidencial, que deriva diretamente do princípio de neutralidade e independência, o CICV não contribui nos processos de prestação de contas — e procura não ser visto como organização que contribui para isso. A confidencialidade não é um objetivo em si; é uma ferramenta que nos permite construir confiança, acesso seguro e garantir a segurança da nossa equipe e das pessoas que estamos tentando ajudar (permitindo exceções apenas em determinadas circunstâncias muito limitadas). O uso de informações confidenciais do CICV nos processos de prestação de contas, independentemente da sua integridade e legitimidade, pode ser visto como um envolvimento em controvérsias de natureza política, religiosa ou ideológica, o que pode corroer a percepção e a confiança no CICV como um ator humanitário neutro e independente. Isso, por sua vez, afetaria negativamente as nossas atividades e, portanto, as pessoas que precisam de proteção e assistência.
Um esforço coletivo
Muitos atores desempenham um papel fundamental na prevenção do desaparecimento de pessoas, na busca por pessoas desaparecidas, levando os responsáveis à justiça e respondendo às necessidades das famílias. Isso inclui esforços para garantir que as obrigações específicas sobre desaparecimentos forçados sejam respeitadas.
Atores da sociedade civil, incluindo associações de familiares como as Mães e Avós da Praça de Maio, são os principais interessados e defensores na conscientização sobre as vítimas de desaparecimento forçado e outras pessoas desaparecidas, esclarecendo a sorte e o paradeiro delas e levando os responsáveis à justiça. Os seus esforços contribuíram para o desenvolvimento de processos de reforma de leis e políticas. Por exemplo, muitos Estados têm medidas adotadas em nível doméstico para definir novos processos ou melhorar os existentes sobre pessoas desaparecidas (p. ex.: Bósnia e Herzegovina, Colômbia, México e Peru), algumas relacionadas ao desaparecimento forçado especificamente, inclusive devido aos esforços de famílias e organizações. Também foram fundamentais no lançamento do processo em 1981 que levou à adoção da ICPPED. Por todas essas e outras razões (p. ex.: compreensão das necessidades da família; capacidade de influenciar), é essencial apoiar esses atores e envolvê-los na formação de respostas.
Os atores internacionais e regionais também desempenham um papel fundamental no enfoque dos desaparecimentos forçados, principalmente do ponto de vista da responsabilização. Cortes e tribunais internacionais e regionais de direitos humanos, incluindo a Corte Europeia de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, têm contribuído muito para esclarecer e desenvolver princípios normativos relacionados ao desaparecimento forçado. Segundo o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, o desaparecimento forçado constitui um crime contra a humanidade quando cometido como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra qualquer população civil, com conhecimento do ataque.[3]
Os órgãos de tratados de direitos humanos e os procedimentos especiais do Conselho de Direitos Humanos também desempenham um papel normativo e de defesa fundamental sobre o desaparecimento forçado. É importante ressaltar que o Comitê sobre Desaparecimentos Forçados e o Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários, por meio de papéis e funções complementares, apoiam os Estados na sua luta contra os desaparecimentos forçados. As funções do Comitê sobre Desaparecimentos Forçados estão legalmente fundamentadas na ICPPED. É sua responsabilidade monitorar a sua implementação, inclusive examinando Relatórios dos Estados Partes e recebendo reclamações individuais. O Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários ajuda as famílias a determinarem a sorte e o paradeiro de membros da família supostamente desaparecidos.
Os esforços continuam – mas precisam ser redobrados – para aumentar a conscientização sobre as obrigações relacionadas ao desaparecimento forçado e outras pessoas desaparecidas e promover um compromisso político sustentado, tanto nacional quanto internacionalmente, para garantir o cumprimento da lei. Aqui a ICPPED é fundamental: os Estados que ainda não o fizeram devem ratificá-la, e aqueles que o fizeram devem trabalhar em estreita colaboração com o Comitê sobre Desaparecimentos Forçados para garantir a sua implementação efetiva, inclusive tornando o desaparecimento forçado um crime em nível doméstico.
As resoluções da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (1974 e 2020) e a Resolução 2474 sobre pessoas desaparecidas também são ferramentas importantes para aumentar a conscientização e aumentar o apoio, inclusive para o trabalho de mecanismos de direitos humanos relacionados a desaparecimentos forçados e de outros atores da sociedade civil, colocando o assunto na agenda global regularmente. Em particular, a Resolução 2474 enfatiza que a questão das pessoas desaparecidas é uma prioridade durante o conflito, não apenas no pós-conflito. Isso é fundamental para uma ação precoce e preventiva. A resolução também encoraja os representantes especiais relevantes da Secretaria Geral das Nações Unidas a considerar esta questão ao implementar os seus mandatos, inclusive em discussões bilaterais com os Estados. Finalmente, a Resolução 2474 também insta os Estados membros a cooperarem com diferentes atores, incluindo organizações internacionais, sobre a questão.
Para uma resposta eficaz e abrangente
Entre o DIH e o DIDH, o marco legal internacional é claro, robusto e abrangente, mas alcançar a universalização da ICPPED e a implementação adequada e o cumprimento das obrigações relevantes requer vontade política. Isso continua sendo um desafio em muitos contextos. As pessoas continuam desaparecidas e desaparecidas à força, e as famílias continuam sofrendo, à medida que o tempo passa.
Uma resposta eficaz e abrangente à tragédia dos desaparecimentos forçados, outras pessoas desaparecidas e as suas famílias é um empreendimento complexo que vai além da capacidade e do mandato de qualquer ator. As iniciativas e os esforços de muitos atores com diferentes papéis, enfoques e áreas de especialização são fundamentais.
O CICV faz parte desses esforços e busca assegurar que o seu envolvimento seja complementar ao de outros atores. Por exemplo, o seu Projeto de Pessoas Desaparecidas criou uma comunidade global de profissionais que reúne diferentes partes interessadas e famílias de pessoas desaparecidas, incluindo aquelas que desapareceram à força, para incentivar intercâmbios multidisciplinares e o desenvolvimento conjunto de melhores práticas e documentos de orientação. Uma parte importante deste trabalho é o diálogo contínuo e o envolvimento de atores como o Comitê sobre Desaparecimentos Forçados e o Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados e Involuntários.
Finalmente, lidar com desaparecimentos forçados e outros casos de pessoas desaparecidas, de acordo com as suas obrigações perante o DIH e o DIDH, é responsabilidade das autoridades envolvidas. Trabalhar para construir um ambiente propício para evitar que pessoas desapareçam à força ou desapareçam em outras circunstâncias, buscar as pessoas desaparecidas, levar os responsáveis pelos crimes à justiça e defender os direitos das famílias continua tão essencial quanto décadas atrás. Devemos continuar buscando promover o compromisso político sustentado das autoridades envolvidas para alcançar esses objetivos e um ambiente que não deixe de lado o sofrimento das famílias mesmo na guerra e mesmo depois de décadas. Isso requer o envolvimento de advogados e defensores.
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[1] ICPPED, artigo 2º, 20 de dezembro de 2006; preâmbulo da Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra o desaparecimento forçado; e a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas; e o artigo 2º, 9 de junho de 1994.
[2] Ver notavelmente Conferência Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho: Resolução II (1984), p.149; Resolução XIII (1986), p. 157;e Resolução 1 Plano de Ação (1999), p. 150. Veja também as conclusões os eventos realizados antes da Conferência Internacional de Peritos Governamentais e Não Governamentais sobre Pessoas Desaparecidas (19-21 de fevereiro de 2003) exigindo todas as medidas necessárias para prevenir e punir o desaparecimento forçado, o treinamento de agentes da lei nesse crime e a implementação de obrigações, incluindo a proibição do desaparecimento forçado (pp. 29, 37 e 49).
[3] Art. 7(1)(i); art. 7(2)(i) incluem organizações políticas na definição de desaparecimento forçado.
Veja também
- Filipa Schmitz Guinote e Eva Svoboda, Where are they? Three things the families of missing persons teach us about war and peace, 6 de maio de 2021
- Ellen Policinski, The Missing: What’s in this edition of the Review, 2 de julho de 2019
- Kvitoslava Krotiuk, Memory and war: does time really heal?, 17 de dezmebro de 2019
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