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De criança soldado a criança “terrorista”: proteger a inocência do combate ao terrorismo

Combate ao terrorismo / Princípios humanitários 7 mins read

De criança soldado a criança “terrorista”: proteger a inocência do combate ao terrorismo

Apesar das proibições legais, as crianças continuam sendo recrutadas e usadas em várias funções durante conflitos armados, em alguns casos por grupos armados rotulados como “terroristas”. É essencial que as políticas e práticas de combate à violência extrema de tais grupos tratem as crianças acima de tudo como vítimas, independentemente de sua vinculação com grupos armados, e trabalhem em busca de soluções no melhor interesse das crianças.

Nos últimos anos, o recrutamento e o uso de crianças por grupos designados como “terroristas” pelo Conselho de Segurança da ONU ou por Estados individuais têm captado a atenção de formuladores de políticas e do público em geral. É importante observar que o Conselho de Segurança da ONU, na Resolução 2427 (2018), destacou “a necessidade de prestar atenção ao tratamento das crianças vinculadas com todos os grupos armados não estatais, incluindo aqueles que cometem atos de terrorismo”, e a crescente consideração sobre a questão levou os formuladores de políticas a abordar a proteção infantil e os padrões de justiça juvenil em todo o ecossistema de contraterrorismo, incluindo o Memorando de Neuchâtel e um manual do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), assim como em um manual e um conjunto de princípios-chave do Escritório de Luta contra o Terrorismo da ONU.

Em paralelo a essas salvaguardas de proteção, no entanto, leis e políticas destinadas a combater o extremismo violento também foram significativamente baseadas e influenciadas pela realidade dos “grupos designados como terroristas” que usam e recrutam crianças.

O impacto dessas leis e políticas de combate ao terrorismo sobre as crianças está no cerne de várias preocupações sérias, entre as quais uma que surge do debate obscuro, embora crucial, sobre o que realmente classifica um grupo como “terrorista” na ausência de uma definição universalmente aceita. Tais designações não se baseiam em uma análise legal objetiva e, portanto, são com frequência subjetivas.

Em um nível mais fundamental, porém, a extensão das leis e políticas de luta contra o terrorismo a crianças envolvidas com grupos armados rotulados de “terroristas” levanta uma série de questões de proteção, como a detenção e o tratamento de crianças dentro do sistema de justiça criminal, a perspectiva da pena de morte para crianças acusadas de atos terroristas, a separação das crianças de seus familiares e a idade da responsabilidade penal.

Essa extensão também corre o risco de desencadear uma mudança de paradigma da proteção para a securitização, o que inevitavelmente gera tensões com a proteção especial concedida às crianças pelo Direito Internacional Humanitário (DIH) e pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos. Com poucas exceções, essa questão recebeu pouca atenção até agora.

Vítimas ou perpetradores?

A identidade dual das crianças no contexto das hostilidades é reconhecida. Por exemplo, os Princípios de Paris destacam que as crianças vinculadas com forças armadas ou grupos armados que são acusadas de crimes segundo o direito internacional “devem ser consideradas principalmente como vítimas de crimes contra o direito internacional, não apenas como perpetradores”.

Do ponto de vista do DIH e do Direito Internacional dos Direito Humanos, este é realmente o caso. O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional e o Protocolo Opcional da Convenção sobre os Direitos da Criança somente proíbem o recrutamento e o uso de crianças em hostilidades, um ato que envolve responsabilidade penal individual. Não obstante, as crianças recebem proteção especial, associada à sua inocência e vulnerabilidade, o que, por sua vez, lhes confere direitos especiais, mas atuação limitada.

Nos últimos anos, no entanto, o foco centrado na vitimização das crianças vinculadas com grupos armados tem sido questionado por ser excessivamente simplista, ignorando a atuação das crianças e sua própria percepção de seu papel. Uma crítica comum é que a proibição de recrutar e usar crianças não prescreve um curso de ação para a questão da responsabilidade penal individual de crianças que podem ter se envolvido em crimes. Independentemente de serem consideradas como perpetradores, segundo o DIH e o Direito Internacional dos Direitos Humanos as crianças continuam tendo direito a proteção especial, o que, por sua vez, exige que os Estados considerem padrões de justiça juvenil, alternativas à ação penal e foco na reabilitação e na reintegração.[1]

Por outro lado, no marco do combate ao terrorismo, crianças envolvidas em “atividades terroristas” ou vinculadas com grupos designados como “terroristas” são predominantemente consideradas ameaças e abordadas a partir de uma perspectiva de segurança que privilegia seu papel potencial como perpetradores. Por exemplo, na Resolução 2396 (2017) sobre o retorno de combatentes estrangeiros e seus familiares, o Conselho de Segurança da ONU enfatiza que os Estados Membros são obrigados a garantir que qualquer pessoa que participe de atos terroristas seja levada à Justiça, “incluindo no que diz respeito a combatentes terroristas estrangeiros e cônjuges e crianças que acompanham combatentes terroristas estrangeiros que retornam e se mudam para outro lugar”, embora reconhecendo que mulheres e crianças requerem “atenção especial no desenvolvimento de estratégias personalizadas de ação penal, reabilitação e reintegração”, já que elas “podem ter servido em diferentes funções”.

Como isto funciona na prática? Nas zonas de conflito, milhares de crianças são privadas de liberdade ante a mera suspeita de associação com grupos designados como terroristas. Enquanto isso, alguns Estados de origem de combatentes estrangeiros e seus filhos hesitam em repatriar essas pessoas, com litígios em andamento em diversos Estados da Europa Ocidental com repercussões potencialmente de amplo alcance.[2]

Com esse pano de fundo, a Resolução 2427 do Conselho de Segurança da ONU proporciona uma reafirmação importante e muito necessária da estrutura de proteção infantil em relação a crianças vinculadas com grupos designados como “terroristas”. Sabemos, por experiência própria, que as crianças correm o risco de dupla vitimização: uma por meio de seu recrutamento, uso e exposição à violência desde pequenas; e outra por meio de sua classificação como ameaça. É essencial demonstrar humanidade e apoio a qualquer criança obrigada a viver em um mundo de violência e trabalhar para encontrar soluções que respondam aos seus melhores interesses.

Notas de rodapé

[1] Além dos Princípios de Paris, ver Artigo 6(3) do Protocolo Opcional da Convenção sobre os Direitos da Criança e o parág. 21 da Resolução 2427 (2018) do Conselho de Segurança.

[2] Ver, por exemplo, Al Jazeera, ‘Dutch state to appeal order to take back children of ISIL Mother’, 12 de novembro de 2019; Al Jazeera, ‘German Court Rules on Repatriation of Syria ISIL Fighter’s Family’, 11 de julho de 2019, The Washington Post, ‘Europe has resisted taking back citizens who joined ISIS. Now, it may not have a choice’, 15 de novembro de 2019. Há também dois processos pendentes contra a França no Comitê dos Direitos da Criança levantando a questão da repatriação de crianças, ver Processos Nos. 77/2019 e 79/2019 no Quadro de Processos Pendentes no Comitê dos Direitos da Criança.

Veja também

Ellen Policinski, Children and war: upcoming Review edition, 19 de novembro de 2019

Event at ICRC Humanitarium, War and the Children Left Behind, 28 de novembro de 2019

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