À medida que os Estados se concentram cada vez mais em fortalecer as suas capacidades de defesa, as discussões sobre a preparação militar estão ganhando destaque, em particular em relação a conflitos de larga escala. Tais conflitos, que envolvem grandes potências, armamento avançado e recursos extensivos, se desenrolariam com intensidade, escala e ritmo consideráveis. As consequências humanitárias seriam de longo alcance e severas e poderiam causar um grande número de vítimas, deslocamento em massa e a interrupção de serviços essenciais. As Convenções de Genebra, adotadas após duas guerras mundiais, foram concebidas precisamente para ajudar a mitigar o sofrimento em conflitos armados. No entanto, a ratificação por si só não é suficiente: para que essas normas sejam mantidas na prática, os extensos preparativos jurídicos e operacionais devem começar em tempos de paz.
Esta publicação introdutória prepara o cenário para uma nova série que examina as etapas necessárias para garantir a conformidade com o Direito Internacional Humanitário (DIH) em conflitos de larga escala. Isabelle Gallino, assessora de Prevenção do CICV, e Sylvain Vité, assessor jurídico sênior do CICV, argumentam que os Estados devem fazer mais do que reconhecer as suas obrigações legais. As normas aplicáveis devem ser entendidas, internalizadas e apoiadas por medidas jurídicas e práticas hoje para que sejam eficazes quando um conflito armado irromper. Em última análise, a falta de preparação pode debilitar até mesmo os esforços mais bem-intencionados para cumprir o DIH.
Ao contemplar as possíveis consequências de um conflito de larga escala — a destruição, o sofrimento e as profundas cicatrizes sociais — é natural esperar que esse cenário permaneça apenas isso: uma hipótese que nunca se materializa, a preocupação de observadores excessivamente cautelosos. No entanto, a história nos mostrou que a humanidade nem sempre age com sabedoria e que, uma vez que a máquina da guerra é posta em movimento, os apelos à razão são abafados na cacofonia da violência. Portanto, é em tempos de paz que os Estados devem concordar com as normas que regerão a sua conduta na guerra.
As Convenções de Genebra, que estabelecem as normas fundamentais do Direito Internacional Humanitário (DIH), nasceram em 1949 — após duas guerras mundiais devastadoras — da determinação do mundo de estabelecer normas claras durante tempos de paz que mitigariam o sofrimento em conflitos futuros, preservando uma medida de humanidade mesmo nos momentos mais sombrios.
Hoje, as mesmas razões que levaram à adoção dessas convenções parecem mais relevantes do que nunca. Os conflitos armados continuam nas suas formas mais brutais em diferentes partes do mundo, causando muitas vítimas e destruição. Enquanto isso, os Estados pacíficos estão cada vez mais focados em fortalecer as suas capacidades de defesa em resposta a ameaças existenciais percebidas ou desafios à sua soberania. A preparação para conflitos potenciais envolvendo as chamadas “Grandes Potências” ou “Pares” é particularmente preocupante. A disponibilidade de armas de destruição em massa, novas tecnologias e vastos recursos provavelmente aumentaria a intensidade e a escala de um confronto, com trágicas consequências humanitárias. Neste contexto, a importância das Convenções de Genebra – e do DIH de forma mais ampla – não pode ser exagerada.
Os conflitos recentes mostraram que ratificar convenções que minimizam o impacto destrutivo da guerra é um primeiro passo essencial, mas não o suficiente. Hoje, talvez mais em qualquer momento desde a sua concepção, a sua validade e importância devem ser reafirmadas pela comunidade de Estados. Um renovado senso de propriedade e comprometimento é crucial à medida que se intensificam narrativas beligerantes e acúmulos militares.
Esta série ilustra as medidas que precisam ser tomadas com antecedência para garantir a conformidade com o DIH e examina os desafios observados e previstos em conflitos de larga escala. Ao fazer isso, ressalta a razão de ser das Convenções de Genebra e a sua arquitetura institucional cuidadosamente projetada. Em última análise, embora essas normas estabeleçam o mínimo absoluto para a conduta em um conflito de larga escala, todos os esforços devem ser feitos para evitar tal devastação — pois a verdadeira proteção está em evitar a própria guerra.
DIH em conflitos de larga escala
Todos os conflitos armados trazem destruição e sofrimento, independentemente do seu tamanho ou natureza. No entanto, nos últimos anos, os Estados têm se concentrado cada vez mais na preparação para o que se conhece como “operações militares de larga escala” (OMLE) ou “operações de combate de larga escala” (OCLE), refletindo uma mudança mais ampla em direção à prontidão para conflitos de maior intensidade e escala. Em geral, esses conflitos envolvem grandes potências que empunham armamento altamente sofisticado, capaz de conduzir operações militares intensivas em vastas áreas geográficas. Envolvem mobilizações significativas de tropas que podem contar com diversos atores além das forças armadas regulares do Estado, assim como guerras de coalizão. Travadas em vários âmbitos operacionais – terra, ar, mar, espaço e ciberespaço – elas resultam em consequências humanitárias generalizadas, incluindo vítimas, destruição, deslocamento, detenção e graves interrupções no acesso a serviços essenciais, como água, alimentos, assistência médica e eletricidade.
O termo “conflito em larga escala” não aparece no DIH. Em vez disso, as Convenções de Genebra distinguem entre dois tipos de conflitos: conflitos armados internacionais (CAI), que ocorre entre dois ou mais Estados, e conflitos armados não internacionais (CANI), que envolve um Estado e um grupo armado não estatal ou um conflito entre esses grupos. O DIH se aplica a ambos, embora o marco jurídico para os CAI seja mais detalhado. Portanto, um conflito em larga escala pode se enquadrar em qualquer uma dessas categorias, ou uma combinação de ambas, dependendo das partes envolvidas e das circunstâncias.
Embora a natureza em larga escala de um conflito não afete a aplicabilidade do DIH, ainda é uma questão crítica a ser discutida. Primeiramente, por causa das suas vastas consequências humanitárias: conflitos em larga escala, pela sua própria natureza, resultam em um grande número de mortes e ferimentos, um número significativo de prisioneiros, deslocamento em massa e destruição generalizada de infraestrutura e do meio ambiente.
A sua intensidade, escala e ritmo podem ter consequências catastróficas de longo prazo, impactando as gerações futuras. Em segundo lugar, o alto nível de sofisticação tecnológica e capacidades destrutivas esperadas nesses cenários exacerbariam ainda mais o impacto humanitário. Em terceiro lugar, determinadas narrativas em torno de conflitos em larga escala – em particular as alegações de “excepcionalismo” – representam um perigo real, pois sugerem que a escala de um conflito pode justificar uma interpretação expandida de ações permitidas, minando as proteções de vitais do DIH.
Preparação em tempo de paz para conformidade com o DIH
Tendo ratificado as Convenções de Genebra de 1949 e outros tratados importantes, e por meio do Direito Consuetudinário, os Estados são obrigados a tomar medidas jurídicas e práticas para garantir a conformidade com as suas obrigações segundo o DIH. Algumas dessas medidas devem ser promulgadas em tempo de paz para garantir que as autoridades governamentais, o pessoal militar e a população em geral estejam familiarizados com as normas do DIH e que tanto os marcos jurídicos e administrativos, como os processos necessários estejam em vigor.
Os Estados adotaram as Convenções com o entendimento de que, uma vez que um conflito armado irrompe, implementar essas medidas em meio à turbulência de guerra se torna muito mais desafiador. A obrigação de agir em tempo de paz decorre do artigo 1º comum às Convenções de Genebra, que exige que as Altas Partes Contratantes “respeitem e façam respeitar” o DIH. Como esclarece o CICV (Comentário da Terceira Convenção de Genebra do CICV, par. 178), “as Altas Partes Contratantes devem – começando em tempos de paz – tomar todas as medidas necessárias para garantir o respeito às Convenções. Respeitar as Convenções em caso de conflito armado pressupõe regularmente que os preparativos tenham sido feitos com antecedência”.
Essas obrigações de preparação se aplicam tanto aos CAI quanto aos CANI (Comentário da Terceira Convenção de Genebra do CICV, par. 158). Garantir a conformidade com o DIH exige que os Estados tomem medidas em três áreas principais: primeiramente, disseminar o DIH — não apenas dentro das forças armadas, mas também para as populações mais amplas — para que tanto os soldados quanto os civis entendam essas normas.(1) Em segundo lugar, adotar o marco jurídico e administrativo necessário, incluindo traduzir e integrar o DIH em leis, regulamentos e doutrina militar nacionais, e identificar ou estabelecer autoridades e processos necessários para garantir o respeito total ao DIH.(2) Terceiro, implementar medidas práticas, como construir infraestrutura relevante, alocar recursos suficientes e treinar pessoal. A preparação em tempos de paz fortalecerá a capacidade de um Estado de cumprir as suas obrigações segundo o DIH, mesmo em meio aos desafios operacionais e às demandas do conflito armado.
Construção de uma cultura de conformidade em conflitos de larga escala
Antecipar os desafios humanitários de conflitos de larga escala requer reconhecer os obstáculos impostos pela sua intensidade, escala e ritmo, assim como as pressões existenciais que os Estados podem perceber em tais cenários. A interconexão das sociedades modernas – por meio de cadeias de suprimentos globais, redes financeiras, telecomunicações e infraestrutura digital compartilhada – significa que um ataque a um objeto pode desencadear um efeito dominó, interrompendo serviços essenciais para civis e estendendo as consequências muito além da zona de conflito imediata. Além disso, tecnologias avançadas, incluindo sistemas de armas cibernéticas e autônomas, introduzem novos desafios para salvaguardar a infraestrutura civil e, de forma mais geral, garantir a conformidade com o DIH. Os Estados devem estar preparados para navegar pelas complexas responsabilidades e desafios que viriam com tais conflitos.
Em tais cenários, os Estados têm a responsabilidade primária de atender às necessidades essenciais dos civis sob o seu controle e devem planejar adequadamente as demandas humanitárias de conflitos em larga escala. Isso inclui estabelecer sistemas e procedimentos para fornecer recursos essenciais — incluindo alimentos, água e assistência médica — em áreas severamente afetadas pelo conflito. Embora os atores humanitários desempenhem um papel fundamental na resposta à crise, a escala de tais conflitos provavelmente excederá a sua capacidade de resposta, tornando crucial que os Estados assumam responsabilidades substanciais na prestação de serviços essenciais para atender às necessidades básicas da população.
A escala das necessidades médicas e forenses também deve ser prevista. Antes de que um conflito em larga escala irrompa, os Estados devem contar com um marco jurídico e estruturas institucionais e logísticas em vigor para: procurar, recolher e evacuar as pessoas feridas, doentes, náufragas e mortas; dar o devido tratamento aos restos mortais de quem perece durante as hostilidades; e evitar que as pessoas desapareçam. Os Estados também devem estar preparados para prestar os cuidados médicos necessários para quem foi afetado, garantindo que estejam disponíveis infraestrutura e pessoal de saúde e material médico adequados.
O deslocamento em massa é outra consequência provável de conflitos em larga escala. Os Estados devem estar preparados para acomodar populações deslocadas com segurança e defender os seus direitos, sobretudo grupos vulneráveis, como crianças, pessoas idosas ou com deficiência.
Quanto ao combate em si, os conflitos em larga escala poderiam compreender meios e métodos de guerra altamente avançados, segmentação em múltiplos domínios, ademais da rápida tomada de decisão sobre segmentação. No entanto, isso não deve dissuadir os Estados de manterem o seu comprometimento com as normas e princípios do DIH. A preparação para a conformidade com o DIH requer antecipar esses desafios, incorporar lições de operações de combate em larga escala anteriores e garantir que o treinamento militar reforce rigorosamente as capacidades de respeitar os princípios de distinção, proporcionalidade e precaução — mesmo sob condições extremas.
Preparação específica do Estado em conflitos armados internacionais
Conforme mencionado, os CAI impõem obrigações jurídicas específicas e restrições práticas aos Estados, exigindo preparação antecipada. As operações relacionadas à detenção são um exemplo importante. As Convenções de Genebra estabelecem requisitos detalhados para o internamento de prisioneiros de guerra e outras pessoas privadas de liberdade. Este marco visa garantir que essas pessoas gozem de tratamento humano e exige que mecanismos institucionais, infraestruturas, treinamentos e processos apropriados estejam em vigor. Ao anteciparem um potencial CAI de grande escala, os Estados devem estimar o número provável de pessoas detidos, alocar o pessoal, os recursos e a logística necessários para administrar a operação em conformidade com o DIH e identificar instalações de detenção adequadas que atendam aos padrões do DIH. (3)
A ocupação no CAI também exige um planejamento cuidadoso. Segundo os Regulamentos de Haia de 1907 e a Quarta Convenção de Genebra de 1949, uma potência ocupante tem responsabilidades extensas em relação à população civil em territórios ocupados. Isso inclui a restauração e a manutenção da ordem e da segurança públicas e, em termos gerais, a administração do território ocupado para o benefício da população. (4) Antecipar essas obrigações legais requer planejamento proativo, pois as demandas da lei de ocupação podem colocar pressão significativa sobre os recursos e capacidades militares.
As operações militares em larga escala no mar apresentam desafios adicionais. O Estado deve desenvolver capacidades para procurar, recolher e evacuar um número potencialmente grande de pessoas feridas, doentes e náufragas, garantindo que recebam cuidados médicos adequados. (5) O desenvolvimento de capacidades também se aplica às obrigações dos Estados de procurar, recolher e evacuar os mortos sem distinção adversa, (6) uma tarefa complicada por vastas áreas marítimas. O tratamento de combatentes capturados no mar também exige medidas adequadas para garantir que essas pessoas se beneficiem de todas as proteções legais a que têm direito segundo o DIH enquanto detidas no mar e que sejam transferidas para terra o mais rápido possível. (7)
Conclusão
Com sorte, o mundo nunca verá outro conflito em larga escala, e todos nós devemos fazer o possível para nunca deixar que isso aconteça. Ao mesmo tempo, os Estados parte das Convenções de Genebra têm o dever de garantir que estruturas e mecanismos estejam em vigor para proteger a integridade e a dignidade humanas caso o impensável ocorra. As Convenções de Genebra nasceram dos momentos mais sombrios da humanidade — a nossa responsabilidade hoje é garantir que as lições aprendidas jamais sejam esquecidas e que esses padrões mínimos sejam mantidos agora e no futuro.
Nota dos autores: Os autores gostariam de expressar a sua gratidão a Abby Zeith, Lindsey Cameron, Nishat Nishat e Thomas de Saint Maurice por contribuírem para as ideias desenvolvidas nesta publicação.
Referências:
1. Primeira Convenção de Genebra, art. 47; Segunda Convenção de Genebra, art. 48; Terceira Convenção de Genebra, art. 127; Quarta Convenção de Genebra, art. 144; Protocolo Adicional I, art. 6º, 82, 83; Protocolo Adicional II, art. 19; Estudo do DIH Consuetudinário, norma 143.
2. Primeira Convenção de Genebra, arts. 48-49; Segunda Convenção de Genebra, arts. 49-50; Terceira Convenção de Genebra, arts. 128-129; Quarta Convenção de Genebra, arts. 145-146; Protocolo Adicional I, arts. 84, 85; Estudo do DIH Consuetudinário, norma 139.
3. Confira a próxima contribuição para esta série, sobre operações de detenção de grande escala em conflitos armados internacionais.
4. Consulte art. 43 do Regulamento relativo às Leis e Costumes da Guerra em Campanha de 1907; e art. 64 da Quarta Convenção de Genebra.
5. Segunda Convenção de Genebra, art. 18 e Protocolo Adicional I, art. 10.
6. Segunda Convenção de Genebra, art. 18.
7. Terceira Convenção de Genebra, art. 22.
Veja também:
- Cordula Droege, Championing IHL compliance in contemporary armed conflict: the 2024 ICRC Challenges Report, 9 de outubro de 2024
- Kelisiana Thynne, Thomas de Saint Maurice, IHL in the aftermath of battles and conflicts: what do we want to achieve?, 14 de julho de 2022
- Sahr Muhammedally, Preparedness in urban operations: a commander’s planning checklist to protect civilians, 11 de maio de 2021