Em todo o mundo, pessoas civis em cidades em guerra enfrentam riscos imensos. A guerra urbana devasta vidas e meios de subsistência, já que pessoas são mortas e feridas, infraestruturas críticas (como hospitais e sistemas de água) são danificadas ou destruídas e comunidades inteiras são obrigadas a fugir. As interrupções nos serviços essenciais aumentam o sofrimento da população e representam desafios humanitários significativos. À medida que a urbanização cresce, o impacto dos conflitos nas cidades exige uma ação urgente e coordenada para reduzir danos e garantir as proteções previstas pelo Direito Internacional Humanitário (DIH).
Na 34ª Conferência Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, realizada em outubro de 2024, essa questão urgente foi levantada através da adoção de um Apelo Solene sobre a Guerra nas Cidades. A resolução, adotada por consenso, reflete um reconhecimento compartilhado do custo humano da guerra urbana e um compromisso com a melhoria da proteção de civis. Para marcar este momento, a resolução foi lida em voz alta durante a conferência, ressaltando sua importância e a responsabilidade coletiva que ela representa. Hoje, compartilhamos a transcrição do documento e o vídeo de sua leitura como um lembrete da necessidade de agir para proteger vidas humanas e preservar a dignidade em ambientes de conflito urbano.
Quando as guerras são travadas nas cidades, vemos um número assustadoramente alto de pessoas civis feridas e mortas. Repetidamente, vemos hospitais destruídos, sistemas médicos em crise, profissionais médicos ameaçados e feridos, e pacientes doentes sucumbindo a mortes evitáveis. Mesmo quem tem a sorte de sobreviver carrega cicatrizes físicas e mentais muito tempo depois que os combates diminuem.
Quando as linhas de frente se movem para as cidades, vemos ruas, casas, bens culturais e edifícios transformados em campos de batalha e civis encurralados em áreas sitiadas. Apesar de sua resiliência e engenhosidade, vemos a vida de civis em áreas urbanas se tornar cada vez mais precária. Cada ida ao mercado, ao trabalho ou à escola pode significar um ente querido atingido por uma bala perdida, estilhaços ou uma explosão. Vemos pessoas forçadas a fugir perderem o contato com suas famílias, às vezes para nunca mais se encontrarem.
Quando armas explosivas são usadas nas cidades, frequentemente vemos bairros inteiros transformados em escombros, com seus habitantes enterrados sob eles. Infraestruturas cruciais à sobrevivência da população civil são destruídas e danificadas, e não há meios adequados para o seu reparo. Vemos os moradores ficarem sem água potável e alimentos, o fornecimento de eletricidade ser interrompido e as redes de comunicação entrarem em colapso. A vida civil se detém e leva anos, às vezes décadas, para ser reconstruída.
Os voluntários e funcionários do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho tentam aliviar o sofrimento humano e proteger vidas sempre que surgem conflitos armados, muitas vezes em situações perigosas. Vivenciamos os impactos humanitários da guerra urbana todos os dias, e muitas vezes somos impedidos de prestar assistência. Já vimos o suficiente.
Nosso Movimento foi fundado para levar assistência sem discriminação aos feridos no campo de batalha. Décadas de esforços para limitar o sofrimento das vítimas da guerra culminaram, há 75 anos, na adoção das Convenções de Genebra e, posteriormente, de seus Protocolos Adicionais.
No entanto, essas conquistas históricas contrastam fortemente com a escala de devastação e sofrimento dos recentes conflitos travados nas cidades, onde se estima que 70% da população global viverá até 2050. As tendências atuais em relação aos conflitos urbanos apresentam profundas implicações para a proteção de pessoas civis, a assistência humanitária, o Direito Internacional Humanitário (DIH) e as gerações futuras.
Portanto, apelamos solenemente a todos os Estados Partes das Convenções de Genebra para que cumpram sua obrigação de respeitar e garantir o respeito ao DIH em todas as circunstâncias.
Além disso, fazemos um apelo solene a todos os Estados, bem como aos grupos armados não estatais que participam de conflitos armados, para:
- garantir, quando os combates em áreas urbanas não puderem ser evitados, que a proteção de civis e de bens de caráter civil sejam reconhecidas como prioridades estratégicas em operações militares e implementadas, inclusive por meio do cumprimento integral e rigoroso do DIH e de políticas e práticas eficazes de mitigação de danos civis;
- para todos os Estados, endossar a Declaração Política de 2022 sobre o Fortalecimento da Proteção de Civis contra as Consequências Humanitárias do Uso de Armas Explosivas em Áreas Povoadas (Declaração Política) e, para todos os Estados e grupos armados não estatais que participam de conflitos armados, aderir e implementar fielmente seus compromissos;
- adotar e implementar políticas para evitar o uso de armas explosivas com ampla área de impacto em áreas povoadas devido à probabilidade significativa de efeitos indiscriminados, inclusive ao implementar o compromisso da Declaração Política de restringir ou abster-se, conforme apropriado, do uso de todas as armas explosivas em áreas povoadas;
- melhorar a capacidade das forças armadas de precisar a localização e a natureza interconectada da infraestrutura crítica que fornece serviços essenciais para as populações civis, e evitar danos a esta infraestrutura;
- tomar todas as precauções possíveis para proteger a população civil e os bens civis sob ataque e contra os efeitos dos ataques, defendendo a exigência de que os combatentes se distingam da população civil e cumpram a proibição do uso de escudos humanos;
- respeitar e proteger profissionais médicos, instalações e transporte, bem como funcionários, voluntários e recursos da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, além de assegurar o caráter protetivo dos emblemas;
- facilitar o acesso seguro, rápido e desimpedido a áreas de conflito urbano para organizações humanitárias imparciais, defesa civil, prestadores de serviços básicos e suprimentos essenciais;
- garantir que todas as forças armadas recebam treinamento adequado e orientação operacional que as apoie no cumprimento do DIH e na proteção das populações civis durante combates em áreas urbanas;
- monitorar o cumprimento do DIH e garantir a responsabilização por violações do DIH, inclusive por meio de investigações e processos imediatos, independentes e eficazes, conforme apropriado;
- revisar e melhorar as capacidades das forças armadas para entender os impactos humanitários de suas operações militares, inclusive por meio da coleta e análise de dados desagregados e que incluam os pontos de vista de mulheres, homens, meninas e meninos afetados pela guerra urbana, a fim de dar subsídios para a tomada de decisões, avaliar o cumprimento do DIH e responder às necessidades da população civil.
Cada um de nós pode, um dia, ter a família escondida em um porão, um vizinho sitiado pelo fogo cruzado ou um amigo impedido de receber tratamento médico vital. Esta já é a realidade de milhões de pessoas, e juntos podemos fazer a diferença. Deixemo-nos guiar por nossa humanidade comum e adotemos medidas urgentes e eficazes para aliviar a situação das pessoas civis afetadas pelos conflitos urbanos.
Veja também:
- Ellen Policinski, The Geneva Conventions at 75: what was the role of the International Conference of the Red Cross and Red Crescent in securing protection for civilians?, 22 de outubro de 2024
- Helen Durham, Kosuke Onishi, ‘Act today, shape tomorrow’: the 33rd International Conference, 10 de dezembro de 2019