Em conflitos armados, o gênero molda a experiência de um indivíduo de maneiras complexas. Porém as tendências podem ser previsíveis. Em particular, para mulheres e meninas, que enfrentam a desigualdade estrutural de gênero, inclusive em contextos de conflito. Via de regra, elas têm menos recursos financeiros, menos acesso a serviços essenciais e menos representação nos órgãos decisórios. Portanto, as operações militares não ocorrem em condições de igualdade para mulheres e meninas. Com isso em mente, uma perspectiva de gênero é uma ferramenta relevante para profissionais do Direito Internacional Humanitário (DIH) enquanto buscam entender e reduzir os danos à população civil.
Neste post, Helen Durham, Cordula Droege, Lindsey Cameron e Vanessa Murphy lançam o novo relatório do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) sobre Os impactos determinados pela questão de gênero nos conflitos armados e as implicações para a aplicação do DIH. Este relatório dá início a uma série de posts organizadas em conjunto pelo CICV e pelo fórum Just Security como parte de uma série sobre Gênero e Conflito. Nos próximos meses, a série contará com contribuições de diferentes especialistas que explorarão as implicações humanitárias, jurídicas e militares da integração de uma perspectiva de gênero na interpretação e na aplicação do DIH – e os desafios levantados por essa perspectiva.
Apesar de o Direito Internacional garantir direitos iguais para mulheres e homens, mulheres e meninas enfrentam a desigualdade de gênero em todos os países do mundo. Relatórios indicam que em contextos humanitários, a situação é particularmente sombria: mais de 21% das meninas em idade escolar (ensino fundamental) estão fora da escola — em comparação com 15 por cento dos meninos. A porcentagem de famílias chefiadas por mulheres normalmente atinge 33% do total e essas famílias enfrentam maiores riscos de desnutrição e insegurança alimentar. É provável que menos de 20% das mulheres sejam remuneradas pelos seus trabalhos em países com conflitos prolongados — em comparação com 69% dos homens. As ações das partes em conflito causam mais danos às dimensões de gênero e – como se a guerra não bastasse – a pandemia de covid-19 ampliou a diferença de gênero nos últimos anos.
No ritmo atual, estima-se que serão necessários 135,6 anos para fechar a lacuna de gênero no mundo todo. Em outras palavras, as operações militares ocorrem no campo do gênero. Neste post, desvendamos algumas das suas implicações para profissionais do DIH, condensando uma seleção de questões-chaves do novo relatório do CICV sobre os impactos determinados pela questão de gênero nos conflitos armados e as implicações para a aplicação do DIH. O post começa com cinco fatos para orientar quem busca entender os impactos da questão de gênero nos conflitos armados. Em seguida, ilustra como uma perspectiva de gênero pode e deve ser aplicada às obrigações do DIH, usando o exemplo do princípio da precaução. Por fim, identifica os caminhos a seguir para aliviar da melhor maneira os danos que os conflitos armados provocam à questão de gênero, inclusive ampliando as boas práticas existentes e aproveitando o vetor da agenda da Organização da Nações Unidas (ONU) para mulheres, paz e segurança.
Sobre sólidos alicerces: uma nota sobre a procedência
O relatório e este post refletem as discussões em uma reunião de especialistas convocada pelo CICV em 2021. Nessa reunião, o CICV procurou engajar especialistas do âmbito acadêmico e profissional em uma reflexão crítica sobre o papel do DIH no enfoque dos impactos determinados pelo gênero em conflitos armados. Uma das principais conclusões da discussão foi que a incorporação de uma perspectiva de gênero na aplicação do DIH é um alicerce para o progresso para aliviar os danos que os conflitos armados provocam à questão de gênero.
Isso envolve a integração da perspectiva de gênero em todo o trabalho jurídico do CICV, um enfoque em andamento no projeto do CICV para atualizar os Comentários sobre as Convenções de Genebra (ver aqui e aqui). Também reitera a fundamentação da Plataforma de Ação de Pequim de 1995 (par. 141), na qual 186 Estados concordaram que se deve promover a integração de uma perspectiva de gênero nas decisões relativas a conflitos armados.
Quase 30 anos depois, as implicações dos impactos determinados pela questão de gênero em conflitos armados permanecem relativamente mal compreendidas entre as pessoas responsáveis pela tomada de decisão e pelo planejamento na hora de aplicar o DIH. Este post tem como objetivo oferecer alguns pontos de partida e orientações para o progresso futuro.
Cinco fatos sobre a compreensão dos impactos determinados pela questão de gênero em conflitos armados
1. O dano contra a população civil está composto por diferentes impactos para diversas mulheres, homens, meninas e meninos.
O gênero molda a experiência de um indivíduo em conflitos armados de maneiras complexas. As desigualdades estruturais de gênero, os papéis de gênero e as dinâmicas de poder social pré-existentes aos conflitos armados podem mudar e/ou se intensificar no transcurso dos conflitos armados. Ademais, a questão de gênero é transversal a outros fatores de identidade, incluindo idade, classe, deficiência, raça, religião e orientação sexual na hora de determinar experiências individuais.
Com essa variação em mente, o tipo de dano determinado pelo gênero que as pessoas podem experimentar como resultado da conduta de hostilidades pode surgir a partir de diferenças de sexo biológico, assim como diferenças relacionadas aos seus papéis e responsabilidades socialmente atribuídos. Por exemplo, danos específicos a um sexo surgem a partir do uso de determinadas armas e do enfoque de gênero na análise de dados de vítimas civis indica que a mortalidade de mulheres, homens, meninos e meninas ocorre em taxas diferentes, dependendo do contexto e da arma usada. Tal dano pode ser direto e indireto. Os efeitos diretos do gênero podem incluir, por exemplo, a perda de vidas e ferimentos em mulheres e meninas resultantes de um ataque em um contexto em que elas tiveram acesso desigual a cuidados médicos. Os efeitos indiretos de gênero podem incluir, entre outros, o aumento das responsabilidades de cuidar e gerar renda para as mulheres quando os homens da família são mortos ou feridos.
2. A desigualdade de gênero está presente nos campos de combate.
No mundo todo, a desigualdade de gênero é bem documentada, inclusive em países afetados por conflitos. Portanto, é previsível. Essas desigualdades provavelmente exacerbarão os danos civis diretos e indiretos causados pelas hostilidades: as mulheres provavelmente terão menos recursos financeiros para lidar com ferimentos e danos materiais, são mais propensas a serem discriminadas por causa de deficiências, podem enfrentar barreiras adicionais ao acesso à assistência à saúde quando feridas (p. ex.: quando só podem ser examinadas por profissionais de saúde do sexo feminino ou precisam de tutela masculina para viajar) e provavelmente serão menos representadas nos papéis de tomada de decisão sobre a prestação de ajuda humanitária.
3. Os impactos do gênero são sentidos por todos (não “apenas” pelas mulheres e meninas).
Embora a desigualdade que afeta a experiência de mulheres e meninas mereça uma análise à parte, as suposições e expectativas de gênero moldam a experiência de todas as pessoas, incluindo a de homens e meninos na condução de hostilidades. Em determinadas situações, pode-se presumir que os homens e meninos são combatentes ou apresentam riscos à segurança simplesmente em virtude do seu gênero. Isso pode levar a resultados problemáticos, como a segmentação com base no gênero e na idade dos homens e a sua exclusão das estimativas de danos acidentais. Tais exemplos acentuam o fato de que o gênero afeta de forma diferente as experiências de mulheres, homens, meninos e meninas relacionadas ao conflito, mas que certamente afetam a todo mundo.
4. As lacunas de dados de gênero tornam as mulheres e meninas mais “invisíveis”.
A “invisibilidade” histórica das mulheres na coleta de dados se torna mais profundamente compreendida e as lacunas de dados são cada vez mais mapeadas. Métodos de coleta de dados que não levam em conta estereótipos, normas sociais e outros fatores podem introduzir vieses que comprometem a qualidade dos dados, com pontos cegos na tomada de decisões.
No entanto, a falta de dados específicos sobre civis em um campo de operações não impede a orientação generalizada de comandantes segundo tendências e padrões em base a evidências sobre as desigualdades e os riscos enfrentados por mulheres e meninas em contextos afetados por conflitos. Uma medida que pode ajudar as partes a entenderem melhor o impacto dos ataques é o monitoramento, o rastreamento e a comunicação de dados de vítimas civis desagregados por sexo e idade, além do uso dessas constatações para trazer informações para futuras avaliações de danos razoavelmente previsíveis.
5.Quem aplica a lei pode afetar a forma como esta é aplicada.
Por exemplo, a noção dentro do DIH de “comandante militar razoável” pode ser vulnerável a preconceitos de gênero. O padrão de “razoabilidade” na prática pode variar dependendo da identidade de tal comandante militar e os seus julgamentos de valor. [1] Com base em suposições de gênero, um/a comandante militar pode atribuir valores diferentes a diferentes tipos de danos civis. Também pode haver uma maior ou menor propensão a considerar determinados tipos de danos “razoavelmente previsíveis”. Em alguns casos, isso pode ser influenciado pelo próprio gênero de quem toma a decisão — e, no que diz respeito a esse ponto, é relevante que os militares sejam na sua maioria homens. Pesquisas em outros campos demonstraram que a inclusão de mulheres tende a ampliar o escopo de informações propostas. O treinamento para o pessoal das forças armadas com responsabilidades de tomada de decisão deve, portanto, considerar se o preconceito de gênero é um problema que impacta a maneira como estão aplicando o DIH e de que forma isso poderia ser trabalhado da melhor maneira.
Implicações para a aplicação do DIH: exemplo do princípio das precauções
Esses entendimentos referentes ao âmbito civil de gênero podem contribuir com informações sobre como as obrigações do DIH são aplicadas por profissionais. Considere a obrigação de precaução no ataque: o DIH exige que todas as precauções possíveis sejam tomadas para evitar ou pelo menos minimizar danos incidentais a civis (art. 57(2) do PA I, Norma 15 do Estudo do DIH Consuetudinário realizado pelo CICV). A capacidade de tomar precauções para minimizar os danos a civis depende da compreensão que o/a militar tem sobre o tipo de dano que pode resultar de um ataque. Práticas como a avaliação de padrões de vida civil – que variam de acordo com a idade, gênero e cultura – podem trazer informações para essas avaliações. Uma análise de gênero de tais padrões de vida pode ajudar os/as comandantes a entenderem como os diferentes grupos usam o espaço e, de forma correspondente, como serão afetados diferentemente por um ataque.
Por exemplo, tal análise de gênero pode ter implicações para advertências em ataques. O DIH exige que, a menos que as circunstâncias não permitam, um aviso prévio eficaz deve ser dado sobre ataques que possam afetar a população civil. A eficácia de um aviso deve ser avaliada do ponto de vista da população civil que pode ser afetada, incluindo mulheres e meninas. Deve alcançar e ser compreendido pelo maior número possível de civis que podem ser afetados pelo ataque, e deve lhes dar tempo para sair, encontrar abrigo ou tomar outras medidas para se proteger.
A esse respeito, as taxas mais baixas de alfabetização e o menor acesso à tecnologia digital entre mulheres e meninas ressaltam que, em determinados contextos, elas podem ficar em desvantagem se os avisos forem veiculados somente por escrito e/ou meios digitais. Em tais contextos, esse tipo de alerta provavelmente será menos eficaz para muitas mulheres e meninas. A implementação de alertas eficazes pode, portanto, exigir a apresentação de informações acessíveis em vários formatos (p. ex.: uma combinação de mensagens de rádio e folhetos com avisos com imagens, em vez de apenas texto escrito) que, juntos, ajudariam a superar o acesso limitado à comunicação digital e as taxas de alfabetização comparativamente mais baixas de mulheres e meninas. Outro ponto pode ser que, em um determinado contexto, as mulheres e meninas passem consideravelmente menos tempo fora de casa do que homens e meninos. Nesse contexto, avisos eficazes que chegam às pessoas em casa podem incluir transmissões através de meios de comunicação e telefonemas.
A obrigação de cuidado constante também é particularmente pertinente à discussão sobre a mitigação de danos civis determinados por gênero. Esta obrigação geral complementa a regra básica de distinção e exige que, na condução das operações militares, tenha-se o cuidado constante de poupar a população civil, civis individuais e bens civis (art. 57(1) do PA I). É uma obrigação de condução, de mitigar riscos e prevenir danos, e se aplica no planejamento ou na execução de qualquer operação militar.
A aplicação de uma lente de gênero na hora de coletar informações durante esse planejamento operacional pode incluir: se a localização das tropas, inclusive em postos de controle e por meio de patrulhas, expõe diferentes mulheres, homens, meninos e meninas a novos riscos; se determinados serviços médicos são mais acessíveis ou importantes para as mulheres do que outros (p. ex.: alguns podem não contar com profissionais do sexo feminino, disponibilidade de serviços de ginecologia e obstetrícia);[2] se as mulheres têm menos acesso a veículos em situações em que se espera que os civis fujam (p. ex.: se muitas mulheres em um contexto não puderem dirigir); se as mulheres e meninas têm taxas de alfabetização mais baixas ou acesso à tecnologia digital; e se as implicações surgem do fato que mulheres e meninas provavelmente terão mais responsabilidades de cuidar de crianças, doentes ou idosos em situações nas quais se espera que os civis fujam.
Caminho a seguir: boas práticas e oportunidades na agenda de mulheres, paz e segurança
Embora o gênero continue sendo uma questão marginal e tensa para muitos militares, existe um progresso. Há vários exemplos de boas práticas na integração das perspectivas de gênero nas operações militares. Entre eles a incorporação de assessoria de gênero em posições de influência e treinamento de gênero para a liderança militar. As orientações para militares do Centro para Governança do Setor de Segurança de Genebra (DCAF) e do Centro Nórdico de Gênero em Operações Militares são recursos instrutivos.
Pormenorizando: se as obrigações do DIH que regem a proteção de civis forem traduzidas na prática de uma maneira que leve em conta os impactos de gênero, então são necessários conhecimentos, habilidades e ferramentas. O pragmatismo é fundamental. Por exemplo, um bom ponto de partida para o progresso incremental pode ser uma ferramenta simples e prática, como uma lista de verificação que defina os tipos de perguntas que devem ser feitas ao avaliar os danos civis. Incluindo questões como “de que maneira mulheres, homens, meninas e meninos de diferentes idades e habilidades usam, precisam ou dependem desse lugar ou espaço?” e “como o valor do objeto civil difere para mulheres, homens, meninos e meninas?” na orientação existente ajudaria a integrar as perspectivas de gênero nas análises e na tomada de decisões.
Cabe concluir colocando essa discussão no contexto da agenda da ONU sobre Mulheres, Paz e Segurança (MPS). As políticas e práticas discutidas acima podem ser estimuladas pelo vetor sobre a Resolução sobre MPS, como um ponto-chave de progresso na formulação de políticas internacionais referente a mulheres e meninas em conflitos armados. O lugar do DIH nele – já firmemente incorporado na Resolução sobre MPS – poderia ser ainda mais aproveitado. Como parte do seu pilar de “proteção”, as resoluções do Conselho de Segurança relacionadas à Resolução sobre MPS pedem aos Estados que apliquem as obrigações do DIH para proteger mulheres e meninas em conflitos armados. O CICV afirma que esse pilar de proteção seria aprimorado se os Estados incorporassem uma perspectiva de gênero na aplicação das obrigações do DIH. Por exemplo, os Planos de Ação Nacionais da Resolução sobre MPS ou políticas relacionadas podem comprometer-se a aplicar e interpretar o DIH sob uma perspectiva de gênero, com o objetivo de garantir que a proteção de mulheres e meninas em conflitos armados seja maximizada e as desigualdades sejam levadas em consideração.[3]
[1] Por exemplo, as diversas opiniões dos peritos durante o julgamento de Gotovina no Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia ilustram as diferentes avaliações de comandantes militares. Para um resumo e uma análise do depoimento de especialistas sobre os princípios que regem a condução das hostilidades, consultar: M. Brehm, Unacceptable Risk: Use of explosive weapons in populated areas through the lens of three cases before the ICTY, PAX, 2014, p. 60.
[2] Da mesma forma, o Ministério da Defesa do Reino Unido afirma na sua política operacional sobre segurança humana que o acesso aos cuidados de saúde deve levar em conta os serviços específicos de gênero, consultar: Ministério da Defesa do Reino Unido, Joint Service Publication 985: Human Security in Defense, Ministério da Defesa, Londres, dezembro de 2021, p. 5.
[3] O Plano de Ação Nacional Sueco assume esse compromisso, consultar: Gabinetes do Governo da Suécia, Women, Peace & Security: Sweden’s National Action Plan for the implementation of the UN Security Council’s Resolution on Women, Peace and Security 2016–2020, Gabinetes do Governo da Suécia, Estocolmo, p. 13.
Ver também
- Drew Ambrose, Informar sobre casos de violência sexual em uma zona de conflito, 9 de dezembro de 2021
- Daniel Palmieri, Sexual violence in armed conflict: the historical limits of humanitarian action and the ICRC in the 20th Century, 2 de dezembro de 2021
- Christie Edwards, Gender-based hate crime as an early warning indicator of escalating violence and armed conflict, 30 de novembro de 2021
- Rachael Kitching, Vanessa Murphy & Kelisiana Thynne, Walking the talk on SGBV: an implementation checklist to narrow the gaps between international law and domestic practice, 25 de novembro de 2021
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