No último ano, milhões de pessoas que vivem em áreas afetadas por conflitos tiveram que enfrentar uma insegurança alimentar severa e aguda, e essa cifra continua aumentando. Para muitas delas, a escassez sazonal de comida é uma realidade inevitável, mas a situação é agravada pelo aumento na intensidade e frequência dos choques climáticos, pelos impactos econômicos da Covid‑19 no longo prazo e pelos transtornos causados nos sistemas alimentares globais como resultado da insegurança e do conflito armado.
Neste artigo, a assessora de políticas Ariana Lopes Morey, a colaboradora Menty Kebede e o assessor jurídico Matt Pollard explicam a perspectiva do CICV em relação às dimensões jurídica, diplomática e operacional dos esforços de prevenção da insegurança alimentar e da fome durante conflitos, conforme articulado no resumo de políticas que será publicado em breve. Os autores refletem sobre como a insegurança alimentar e o risco de fome representam um desafio complexo a encarar — que exige agilidade e comprometimento no longo prazo, assim como o envolvimento de muitos atores — e destacam os três pedidos-chave do CICV. Os autores gostariam de agradecer à chefe de estratégia diplomática, Filipa Schmitz Guinote, suas importantes contribuições para a elaboração desse documento.
Em janeiro de 2021, o Diretor Executivo do Programa Alimentar Mundial da ONU, David Beasley, alertou o Conselho de Segurança da ONU sobre uma “fome de proporções bíblicas” em dezenas de países como resultado da pandemia de COVID‑19. Mais de um ano depois, vemos que o número de pessoas em situação de risco não para de crescer.
De acordo com o Relatório Global sobre Crises Alimentares de 2021, o conflito e a insegurança deixaram quase 100 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar aguda, um fator de risco seguido apenas de choques econômicos (40 milhões) e fenômenos meteorológicos extremos (16 milhões). Essas causas não devem ser consideradas de forma isolada, e sim como fatores que se reforçam mutuamente e tendem a ter natureza cíclica, minando a resiliência e as estratégias de superação dos indivíduos, que se tornam incapazes de se recuperar dessas adversidades. Espera-se que o conflito armado na Ucrânia acentue ainda mais os preços de cestas básicas no mundo todo, o que terá um impacto desproporcional sobre outras comunidades fragilizadas e afetadas por conflitos ao redor do planeta que dependem das importações da Ucrânia e da Rússia.
A insegurança alimentar e a fome durante o conflito armado têm desempenhado um papel fundamental na história da ação humanitária local e internacional há tempos, desde a Guerra Civil da Nigéria. Elas também suscitaram o surgimento de uma agenda técnica, financeira, operacional e diplomática sob constante evolução. Criado em 2004, o Quadro Integrado de Classificação da Segurança Alimentar (IPC, na sigla em inglês) proporcionou uma ferramenta objetiva para o monitoramento dos níveis de insegurança alimentar, com o propósito ainda ambicioso de favorecer a ação precoce e preventiva. A Resolução 2417 do Conselho de Segurança da ONU (2018) visava ao acionamento de alavancas diplomáticas para prevenir e tratar das crises alimentares durante situações de conflito. Além disso, atores humanitários e do desenvolvimento têm investido em ferramentas inovadoras para melhorar a produção de alimentos em ambientes sob mudança constante. Embora tenha havido progresso, as cifras não deixam margem para dúvida: a insegurança alimentar é um desafio colossal e persistente.
O CICV trata da insegurança alimentar por meio de um trabalho centrado em suas três áreas de valor agregado: (1) seu alcance a populações carentes em áreas de difícil acesso; (2) sua capacidade de oferecer uma resposta multidisciplinar a necessidades e fatores de risco interconectados; e (3) sua proximidade às pessoas afetadas, o que permite que a organização compreenda os desafios, as capacidades e as estratégias de superação das comunidades, responda aos riscos e necessidades em termos de proteção, e preste assistência. Esses esforços buscam fortalecer a resiliência das populações afetadas para lidarem com choques alimentares e favorecer a sustentabilidade da ação humanitária. A partir de suas décadas de experiência e aprendizado, o CICV elaborou três pedidos-chave para tratar da insegurança alimentar e prevenir a fome em situações de conflito.
1. O acesso é uma solução, e não a solução
Existem situações em que a disponibilidade e a acessibilidade dos alimentos podem ser diretamente afetadas pela condução das hostilidades. Por exemplo, os confrontos podem danificar ou destruir infraestruturas essenciais (como poços, sistemas de irrigação e represas), gêneros alimentícios, plantações e rebanhos pecuários. O risco e o grau de insegurança alimentar também podem aumentar em situações de cerco ou bloqueio, ou caso a assistência humanitária sofra atrasos ou entraves propositais por parte das partes beligerantes.
Os atores humanitários desempenham um papel subsidiário, embora importante, na prevenção e resposta à insegurança alimentar nas situações em que as partes em conflito são incapazes de assegurá-las. No entanto, a responsabilidade primária de garantir que as necessidades básicas da população civil sejam atendidas recai sobre as partes em conflito, o que inclui, entre outras questões, a facilitação do acesso humanitário rápido e desimpedido.
O Direito Internacional Humanitário (DIH) desempenha um papel fundamental na prevenção da insegurança alimentar em contextos de conflito armado [ver o quadro abaixo]. A plena observância das normas do DIH desde o início de um conflito pode ajudar a evitar o deterioramento da situação ao ponto de configurar uma crise alimentar aguda. O respeito por essas normas depende da preparação, do comportamento e das decisões das partes em conflito no que se refere à condução das hostilidades.
Os atores com influência sobre as partes em conflito são responsáveis por garantir o respeito pelo DIH e por reduzir várias das outras pressões geradas pelo conflito armado sobre a segurança alimentar. Por exemplo, as sanções e medidas restritivas implementadas pelos Estados sempre devem contemplar isenções humanitárias, inclusive relativas aos insumos alimentares e agrícolas indispensáveis para a sobrevivência da população civil. Caso contrário, os atores humanitários podem enfrentar obstáculos jurídicos e logísticos complexos na tentativa de garantir que a devida assistência seja prestada a quem precisa dela.
2. A segurança alimentar vai além da comida
Para além do impacto de confrontos locais, a insegurança alimentar pode ser um resultado direto e indireto de efeitos em cadeia mais amplos, nas esferas social e econômica, decorrentes de conflitos em outros países e com repercussões em escala local, nacional e transnacional. A inflação, a desvalorização de moedas e, em alguns casos, a implementação de sanções podem acarretar um aumento drástico dos preços de alimentos, uma diminuição do poder aquisitivo da população e transtornos nas cadeias de abastecimento alimentar locais, regionais e globais. A insegurança causada por conflitos locais, particularmente o deslocamento e a erosão dos laços comunitários, também pode gerar mudanças nos meios de subsistência já estabelecidos, no comércio, nas práticas agropecuárias e na disponibilidade de mecanismos de superação de crises dentro das comunidades. Esses problemas são agravados quando já existe uma situação de pobreza e quando as redes de segurança econômica são insuficientes, inexistentes ou inacessíveis.
Como resultado, é essencial tratar dos pontos de transtorno e dos fatores de risco de insegurança alimentar em todo o sistema alimentar, do nível local até o transnacional, como parte de um investimento na redução de riscos e na ação preventiva. Isso implica compreender de que maneira os transtornos gerados pelo conflito afetam os diferentes componentes dos sistemas alimentares (ou se eles já estavam fragilizados e representavam parte das causas-raiz do conflito) e quais atores têm um papel mitigatório ou exacerbador nos níveis local, nacional, regional e global. O conhecimento e a experiência dos atores locais, o que inclui as autoridades, bem como dos atores de desenvolvimento e das organizações humanitárias que trabalham de perto com as populações afetadas, podem ser aproveitados para enriquecer essa análise.
Naturalmente, essas informações terão que estar acompanhadas de uma disposição política e um investimento financeiro a fim de tratar dos desafios identificados. Os profissionais humanitários desempenham um papel importante, mas não contam com a capacidade ou experiência necessárias para abordar sozinhos questões sistêmicas complexas. Sem um investimento ativo e constante por parte das autoridades nacionais, dos atores do desenvolvimento e do setor privado, é provável que muitas pessoas continuem presas em ciclos de insegurança alimentar cada vez mais severa. A ação precoce e preventiva é um dos investimentos mais inteligentes que se pode fazer em um momento em que a verba humanitária e de desenvolvimento é limitada: algumas pesquisas mostram que, para cada dólar gasto em programas de nutrição para gestantes e crianças com menos de dois anos de idade, há um retorno econômico de até USD 35. Uma resposta sustentável ao desafio da segurança alimentar nos níveis individual e sistêmico requer inteligência na formação de parcerias e uma disposição à cooperação entre atores isolados dentro do setor.
Direito Internacional Humanitário, inanição e prevenção da fome
O DIH proíbe o uso de inanição forçada de civis como método de combate.
Ele também garante proteção especial aos “bens indispensáveis para a sobrevivência da população civil”. Tais bens incluem, entre outros, gêneros alimentícios, áreas agrícolas, plantações, rebanhos pecuários, instalações e suprimentos para o abastecimento de água potável, e infraestruturas de irrigação.
Várias outras normas sobre a condução das hostilidades também podem ajudar a prevenir a fome. Estes são alguns exemplos:
- Normas sobre a distinção, a proporcionalidade e as precauções no ataque, que garantem a proteção de bens civis em termos mais gerais.
- Proibições do uso de veneno e armas químicas e biológicas, restrições do uso de herbicidas como armas, e proibições e restrições do uso de minas antipessoal, munições cluster e armas nucleares.
- Normas sobre a proteção do meio ambiente.
- Normas que proíbem os ataques a represas, diques e centrais nucleares se tais ataques puderem ocasionar a liberação de forças perigosas que causariam danos graves à população civil.
- Normas aplicáveis a cercos e bloqueios.
- A proibição da pilhagem e outras normas relativas à propriedade pública e privada.
Além disso, o DIH exige a disponibilização de água e alimentos adequados para as pessoas privadas de liberdade.
O DIH presume que cada parte envolvida em um conflito armado tem a responsabilidade primária de garantir que as necessidades básicas da população sob seu controle sejam atendidas, o que inclui a disponibilização de água e alimentos adequados. Entretanto, o DIH reconhece que organizações humanitárias imparciais podem oferecer seus serviços para ajudar a assegurar a ajuda humanitária, inclusive quando alguma parte for incapaz ou não estiver disposta a atender a essas necessidades na prática.
Nenhuma parte envolvida no conflito pode negar arbitrariamente seu consentimento a tais atividades. Uma vez dado o consentimento, as partes em conflito, bem como todos os outros Estados envolvidos, têm a obrigação de permitir e facilitar a passagem rápida e desimpedida de ajuda humanitária, sujeita a seu direito de controle.
3. Respostas inclusivas para derrubar barreiras
Em contextos de conflito, podem surgir vulnerabilidades em decorrência de barreiras situacionais que restringem o acesso contínuo da população a alimentos em quantidade suficiente e com qualidade aceitável. No nível individual, as pessoas que vivem em situações de deslocamento, de estigma e tensão exacerbados dentro da comunidade ou de restrição da movimentação (como pessoas privadas de liberdade) enfrentam desafios particulares que dificultam o acesso contínuo a alimentos. No nível comunitário, os indivíduos que moram em lugares assolados pelo conflito armado sofrem efeitos desproporcionais da variabilidade climática e de fenômenos climáticos extremos. Juntos, os efeitos combinados das situações de conflito e de ameaças naturais, como epidemias, pandemias e fenômenos meteorológicos extremos, exacerbam a vulnerabilidade da população à insegurança alimentar e limitam sua capacidade de adaptação. Muitos grupos familiares de baixa renda, especialmente aqueles em zonas rurais, dependem da agropecuária de subsistência para sobreviverem: para se alimentarem e se manterem. Os choques decorrentes de conflitos, de fenômenos climáticos ou da economia global têm um impacto especialmente severo sobre esses indivíduos, que se veem privados de alimentação e dos meios financeiros para adquirir comida ou outros bens essenciais.
O conflito também exacerba as barreiras identitárias, resultantes de características e circunstâncias individuais, o que aumenta a vulnerabilidade das pessoas à desnutrição em situações de insegurança alimentar. Isso inclui indivíduos e grupos com necessidades alimentares especiais — como crianças e adolescentes, mulheres gestantes e lactantes, e pessoas com doenças crônicas —, assim como aqueles que tradicionalmente são vítimas de marginalização e exclusão, como pessoas com deficiência ou com identidade de gênero e/ou orientação sexual diversa da majoritária. As normas e dinâmicas de poder prevalentes podem influenciar quais indivíduos sofrem maior risco de desnutrição em momentos de escassez alimentar. E, é claro, a interseção entre as barreiras identitárias e as situacionais gera riscos exacerbados.
Para tratar dessas barreiras, é preciso ser capaz de alcançar esses segmentos da população a fim de combater a insegurança alimentar e compreender a natureza dos desafios que eles enfrentam, bem como as estratégias de superação disponíveis. As respostas humanitárias e de desenvolvimento devem ser elaboradas para serem inclusivas e equitativas. Além disso, os mecanismos de proteção social, quando existentes, devem ser fortalecidos e estruturados de forma a contemplar grupos diversos. Por fim, o financiamento para a adaptação climática deve chegar até as pessoas que vivem em lugares assolados pelo conflito, dada sua vulnerabilidade particular aos choques climáticos; nos esforços globais mais amplos para enfrentar os impactos da mudança climática, esses indivíduos não devem ser deixados para trás.
Conclusão
As vias que conduzem à segurança alimentar são definidas nos níveis local, regional e global. Durante situações de conflito armado, a insegurança alimentar e a fome podem decorrer de múltiplos fatores interseccionais; alguns ligados diretamente às ações das partes em conflito e outros não. Embora seja crucial facilitar o acesso humanitário desimpedido para alcançar as populações que sofrem de insegurança alimentar, o DIH estabelece outras medidas importantes que devem ser tomadas pelas partes em conflito para prevenir a fome.
Além da maneira como os conflitos são travados, a insegurança alimentar pode surgir como resultado rápido ou gradual de seus efeitos em cadeia mais amplos nas esferas social e econômica, independentemente de os confrontos ocorrerem localmente ou do outro lado do oceano. Sendo assim, é fundamental antever os choques e investir na redução de riscos e no apoio aos meios de subsistência, assim como garantir isenções humanitárias às sanções ou medidas restritivas que forem implementadas. Por último, a segurança alimentar é vivenciada de forma diferente por distintos grupos de pessoas. Os mecanismos de proteção social e programas humanitários devem ser capazes de responder a barreiras situacionais ou identitárias que deixam alguns indivíduos mais vulneráveis à desnutrição que outros. Embora a segurança alimentar seja uma questão persistente que não será resolvida da noite para o dia, acreditamos que uma maior atenção a essas três áreas poderia gerar um impacto tangível na vida daquelas pessoas que enfrentam a insegurança alimentar ao redor do mundo.
Nota do editor: os autores desejam agradecer à Chefe de Estratégia Diplomática Filipa Schmitz Guinote suas contribuições substanciais para o desenvolvimento deste artigo.
Veja também
- Comunicado de imprensa do CICV, Na África, um desastre passa quase despercebido: 1 em cada 4 pessoas sofre consequências de uma crise de segurança alimentar, abril de 2022
- Helen Durham & Christopher Harland, Carve-out in Kabul: hard won resolution lifts humanitarian roadblock in Afghanistan, 3 de fevereiro 3 de 2022
- Kheira Tarif, Four pathways of climate insecurity: a guide for humanitarians, 13 de janeiro de 2022
- Janani Vivekananda, Climate, conflict and crises: first and foremost, do no harm, 27 de fevereiro de 2020
Comentários