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Respeitar o DIH em conflitos de larga escala: como navegar pelas complexidades da região Ásia-Pacífico

As águas que vão do leste do Oceano Índico até o oeste do Oceano Pacífico, passando pelo Sudeste e Leste Asiático, sustentam o comércio global, abrigam abundantes recursos marinhos vitais para a subsistência de muitas pessoas e impulsam as economias da região. São fundamentais para a segurança nacional de muitos Estados e também abrigam grandes potências, vastos Estados arquipelágicos e muitos Estados menores, como pequenas nações insulares. Essas águas também são caracterizadas pela sobreposição de reivindicações marítimas, gargalos estratégicos do transporte marítimo e uma crescente presença militar, inclusive de Estados de fora da região. As tensões aumentam quando ocorrem incidentes marítimos e o risco de que erros de cálculo se transformem em confrontos maiores está sempre presente.

Embora o conflito armado não seja inevitável, caso ocorra, é provável que tenha intensidade, escala e ritmo consideráveis, com consequências humanitárias graves e de grande alcance. A preparação para essa hipótese não requer apenas prevenir uma escalada, mas também garantir que os impactos humanitários sejam mitigados e que seja possível realizar uma ação humanitária imparcial, inclusive em ambientes marítimos complexos, onde Estados neutros também assumiriam responsabilidades importantes.

Neste texto, parte da série “Cumprimento do DIH em conflitos de larga escala”, as assessoras jurídicas do CICV Ansha Krishnan e Eve Massingham exploram alguns dos desafios humanitários impostos por potenciais conflitos de grande porte na região Ásia-Pacífico. Diante da natureza marítima da região, com seu vasto escopo geográfico e as atuais realidades geopolíticas, os aspectos da preparação para conflitos devem ser considerados de modo específico, devido às medidas práticas necessárias para cumprir as obrigações do DIH e se preparar para prováveis consequências humanitárias.

O Oceano Pacífico ocupa cerca de um terço da superfície da Terra, e grandes distâncias separam suas ilhas habitadas. Na economia global de hoje, os Estados remotos do Pacífico que antigamente eram autossuficientes agora dependem do reabastecimento por meio do transporte marítimo, o que os torna vulneráveis a interrupções provocadas pela guerra naval. As numerosas consequências humanitárias seriam particularmente complicadas e precisam ser analisadas com antecedência. Embora a região possa aproveitar sua ampla experiência e seus conhecimentos relativos à resposta a desastres com causas naturais, os conflitos armados de grande porte têm complexidades que exigem consideração adicional para garantir a preparação.

Expansão dos domínios de guerra: o campo de batalha com diversos domínios

O aspecto marítimo do conflito na região Ásia-Pacífico desafiará não apenas os quadros jurídicos, como o direito da guerra naval[1], mas também a capacidade dos Estados de responder na prática às realidades humanitárias. As imensas distâncias no domínio marítimo vão colocar à prova os planos de preparação. A proliferação de sistemas não tripulados, inclusive embarcações no mar, aumenta a complexidade. Os drones navais têm sido usados em operações ofensivas contra navios, aeronaves e alvos costeiros, e a legalidade e adequação dos sistemas de armas autônomas apresentam desafios[2].

Além disso, o conflito armado contemporâneo não está mais confinado à terra, ao mar e ao ar – há uma crescente atividade militar tanto nos domínios cibernético e espacial como no ambiente da informação.[3] As operações cibernéticas que atacam a infraestrutura pública, as redes de comunicação e os sistemas de transporte tornaram-se mais frequentes. Esses ataques tornam difusas as fronteiras que separam os domínios militar e civil, e, com frequência, afetam os serviços básicos. A dependência e a vulnerabilidade dos cabos submarinos em toda a região são um bom exemplo da interação entre domínios de que os Estados devem estar cientes. O risco de um ataque a cabos submarinos de uso duplo (militar e civil) tem consequências humanitárias catastróficas tanto para a região como para o mundo[4].

Guerra em parceria: obrigações para parceiros de coalizão

É provável que qualquer conflito de grande porte na região Ásia-Pacífico envolva operações realizadas em parceria entre diversas forças armadas longe de suas bases militares. Os parceiros de coalizão devem esclarecer papéis e responsabilidades em operações conjuntas de detenção[5], analisar a transferência marítima de pessoas detidas, acatar os quadros jurídicos e procedimentos aplicáveis e definir mecanismos de coordenação, inclusive para a transferência de pessoas detidas entre parceiros[6]. As operações multinacionais recentes envolveram situações que não constituem um conflito armado internacional, portanto, muitos atores na região, apesar de terem participado de operações de coalizão, não precisaram considerar essas questões no quadro ou na escala de um conflito armado internacional.

Imagine uma operação marítima hipotética em apoio a uma das partes em conflito, composta por vários parceiros da coalizão envolvidos em operações de grande porte de captura, transferência e detenção temporária de combatentes inimigos no mar. Esta situação dá origem a várias questões práticas e jurídicas, tais como: quem está exercendo o controle sobre a pessoa detida? Quais quadros jurídicos e processuais regem a captura e as transferências entre parceiros? As partes encarregadas de detenções e transferências elaboraram e concluíram acordos técnicos formais, memorandos de entendimento ou procedimentos operacionais padrão em conformidade com o DIH? Existem procedimentos vigentes para que o parceiro encarregado de transferências avalie se a pessoa transferida correrá o risco de que seus direitos fundamentais sejam violados? As forças navais estão preparadas para receber e custodiar temporariamente pessoas detidas a bordo de navios respeitando o DIH? Existem pontos de desembarque apropriados para garantir um transporte seguro? Há instalações em terra disponíveis e adequadas?[7] Os Estados neutros localizados perto das operações foram efetivamente consultados? No contexto de operações de detenção em larga escala que envolvem forças multinacionais, o princípio de non-refoulement[8] é um exemplo em que a interoperabilidade jurídica e militar exige uma grande coerência da coalizão.

Consultar medidas preparatórias específicas para cumprir o DIH em operações de detenção em larga escala no texto anterior desta série.

Estados neutros: dever de buscar, resgatar e repatriar

É cada vez mais relevante considerar a interpretação e aplicação do direito da neutralidade a Estados neutros e beligerantes em épocas de conflito armado. Historicamente, o direito da neutralidade marítima sempre ganhou destaque durante conflitos armados em larga escala entre poderosas potências navais. O que o conflito armado em larga escala na região Ásia-Pacífico significa para os Estados neutros, sobretudo para aqueles com vastas zonas marítimas ou águas arquipelágicas, é, portanto, um tópico do maior interesse.

Em particular, os Estados neutros podem ser inadvertidamente arrastados para o conflito por meio de detenção incidental ou operações benevolentes de busca e salvamento marítimo[9]. De acordo com o direito internacional do mar, os Estados neutros conservam o dever de coordenar e facilitar os esforços de busca e salvamento marítimos e aeronáuticos. Os capitães de embarcações que hasteiam suas bandeiras têm a obrigação de prestar assistência a quem correr o risco de se perder no mar, e as embarcações governamentais neutras podem se envolver nessas operações de busca e salvamento. Quando exercem controle sobre membros feridos, doentes, náufragos ou mortos de forças armadas beligerantes, os Estados neutros têm obrigações específicas que regem o internamento, a transferência para território neutro para receber atendimento médico e a repatriação – na ausência de acordos em contrário entre os Estados neutros e beligerantes[10].

Imagine uma situação em que o porto de um Estado neutro, nas proximidades da zona de hostilidades, seja a única opção disponível para um navio de guerra beligerante transferir indivíduos feridos, doentes e náufragos. Esses indivíduos podem precisar de atendimento médico urgente, abrigo temporário ou internamento. É possível que o Estado neutro tenha que prestar a assistência humanitária necessária e, ao mesmo tempo, garantir que o navio de guerra e sua tripulação não voltem a tomar parte nas hostilidades[11].

Agora, imagine a mesma situação em grande escala. A vasta área marítima da região Ásia-Pacífico aumenta a complexidade. Um grande número de indivíduos feridos, doentes e náufragos precisaria ser procurado, recolhido e evacuado da zona ativa de hostilidades, que provavelmente ocorrerão longe dos portos estabelecidos e da infraestrutura básica. Os combatentes capturados no mar também podem precisar ser transferidos para terra o mais rápido possível para garantir que suas proteções jurídicas sejam respeitadas[12].

A realidade geográfica da região ressalta a necessidade de que os Estados neutros tenham doutrina, treinamento e procedimentos operacionais vigentes que determinem com clareza os procedimentos de neutralidade com as partes em conflito para as operações de busca e salvamento, evacuação médica e internamento.

Preservar o espaço humanitário e o acesso humanitário: uma obrigação de todos os Estados

Por sua natureza, os conflitos armados de grande escala provocam consequências humanitárias que vão desde um grande número de vítimas fatais, lesões e deslocamentos em massa até a destruição de infraestruturas básicas e do meio ambiente natural. Portanto, é especialmente importante lembrar que, de acordo com o DIH, as organizações humanitárias imparciais têm o direito de oferecer seus serviços às partes para realizar suas atividades humanitárias quando as necessidades básicas da população afetada pelo conflito não forem atendidas[13]. Isso tem implicações particulares para os Estados neutros. Em termos práticos, isso exige uma grande coordenação e cooperação entre todas as partes em conflito e atores humanitários imparciais, como o CICV e as sociedades nacionais. Uma vez que as modalidades de ajuda humanitária imparciais tenham sido definidas, todos os Estados – inclusive os que não participam do conflito – devem permitir e facilitar a passagem rápida e desimpedida da ajuda, sujeita a seu direito de controle[14]. Isso significa que os Estados neutros devem autorizar o uso de seu território para possibilitar o acesso eficaz a zonas de conflito, e as partes em conflito são legalmente obrigadas a cooperar e tomar medidas positivas para facilitar as operações humanitárias.

Acordos entre as partes, inclusive parceiros e Estados neutros, podem ajudar a garantir que as medidas jurídicas e preparatórias necessárias sejam tomadas. Tais acordos podem incluir locais designados para o desembarque e atendimento de pessoas náufragas ou feridas, protocolos para o internamento de prisioneiros de guerra ou civis (inclusive para visitas do CICV[15]) e procedimentos para facilitar a ajuda humanitária e a repatriação. Em termos logísticos, as formalidades administrativas também podem ser simplificadas para facilitar vistos ou outras questões de imigração, questões financeiras/tributárias, controles de importação/exportação, aprovações de viagens a campo, além dos privilégios e imunidades necessários para proteger o trabalho da organização[16]. As distâncias no Pacífico tornam isso razoavelmente previsível.

Conclusão

A perspectiva de um conflito armado internacional em larga escala não vai se concretizar necessariamente, mas é um risco que não pode ser descartado. É fundamental se preparar para as consequências humanitárias em grande escala e as dificuldades logísticas que as acompanham. Há muito em jogo – não apenas para os Estados que se enfrentam no conflito, mas também para os Estados neutros da região: todos devem proteger a vida e a dignidade humanas, caso seja necessário.

Para respeitar o DIH é preciso prever essas dificuldades e se preparar para elas, para que as consequências humanitárias possam ser aliviadas. Este é um papel importante que não deve ser assumido apenas por atores armados e atores humanitários, mas também pelas autoridades estatais, que têm um papel a desempenhar na resposta aos impactos humanitários de conflitos em grande escala.

Observação: As autoras agradecem a Michael Cresham, Snowy Lintern, Andre Smit e David Tuck por terem contribuído com ideias que foram elaboradas neste texto.

[1] Partes do direito da guerra naval estão passando por um processo de atualização realizado pelo Instituto Internacional de Direito Humanitário com o apoio fundamental do CICV e da Cruz Vermelha Norueguesa (consultar https://iihl.org/wp-content/uploads/San-Remo-Manual-Project-Statement.pdf e as atividades da linha de trabalho Guerra naval, da Iniciativa global para incentivar o compromisso político com o Direito Internacional Humanitário, em https://www.icrc.org/sites/default/files/media_file/2025-03/Global_Initiative_workstream_Web.pdf

[2] CICV, “Position on autonomous weapon systems”, CICV, Genebra, 2021: https://www.icrc.org/en/document/icrcposition-autonomous-weapon-systems. Consultar também o Apelo conjunto do secretário-geral das Nações Unidas e da presidente do CICV, CICV, Genebra, 2023: https://www.icrc.org/pt/document/apelo-conjunto-ONU-CICV-proibir-restringir-armas-autonomas.

[3] https://blogs.icrc.org/law-and-policy/pt-br/2025/06/09/transformacoes-no-campo-de-batalha-tecnologia-taticas-e-o-risco-de-fronteiras-de-guerra-cada-vez-mais-difusas/

[4] CICV, IHL and the challenges of contemporary armed conflicts, p. 42.

[5] CICV, Commentary on the Third Geneva Convention, parágrafos 1519-1523.

[6] CICV, Commentary on the Third Geneva Convention, 2020, parágrafo 1537.

[7] CG III, artigo 19.

[8] CG IV, artigo 45 (4).

[9] CG I, artigo 4, CG II, artigo 5; PA I, artigo 19.

[10] CG II, artigo 15, 17, 40 (3), comentário do CICV, artigo 15.

[11] CG II, artigo 17.

[12] CG III, artigo 22.

[13] Consultar os artigos 9/9/9/10 das Convenções de Genebra que determinam o chamado direito de iniciativa humanitária. CG IV, artigo 23, PA I, artigos 70(2), 70(4) e 70(5) e norma 55 do estudo do CICV sobre o DIH consuetudinário.

[14] Para conflitos armados internacionais, consultar CG IV, artigo 23, PA I, artigos 70(2), 70(4) e 70(5) e norma 55 do estudo do CICV sobre o DIH consuetudinário.

[15] Consultar CG III, artigo 126, e CG IV, artigo 143.

[16] CG II, artigo 30.

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