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O diálogo do CICV com grupos armados em 2024

Sessão de conscientização sobre Direito Internacional Humanitário (DIH) para um grupo armado no Mali.

De acordo com o seu mandato, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) dialoga com todas as partes de um conflito armado, incluindo grupos armados não estatais. O CICV tem uma longa tradição de diálogo humanitário confidencial com grupos armados para aliviar e prevenir o sofrimento de pessoas que vivem em áreas controladas por esses grupos. No entanto, esse diálogo se tornou cada vez mais complexo. Por isso, o CICV realiza anualmente um exercício interno para avaliar a situação das suas relações com grupos armados e identificar desenvolvimentos que fortaleçam futuras iniciativas de diálogo em todo o mundo.

Neste artigo, o assessor do CICV Matthew Bamber-Zryd apresenta algumas das principais descobertas desse exercício. O CICV estima que, em 2024, existiam cerca de 210 milhões de pessoas vivendo em áreas sob controle total ou disputado de grupos armados. Há mais de 450 grupos armados que causam preocupação humanitária no mundo, e o diálogo do CICV com esses grupos permanece estável. Apesar do contato bem-sucedido do CICV com 60% desses grupos, o diálogo com alguns outros ainda é um desafio. Os principais obstáculos incluem barreiras impostas pelos Estados, sobretudo em termos de legislação antiterrorismo, e condições precárias de segurança em determinados países.

O CICV interage com todas as partes em um conflito para ter acesso a populações necessitadas que vivem em áreas controladas por todas as partes, incluindo grupos armados não estatais. Consequentemente, o CICV tem uma prática de longa data de participar de discussões confidenciais com grupos armados, o que resultou na prestação de ajuda vital e medidas de proteção a indivíduos que vivem em áreas controladas por esses grupos. Essas ações incluem visitar pessoas detidas mantidas por grupos armados para monitorar o bem-estar delas e facilitar a troca de Mensagens Cruz Vermelha, servindo como um intermediário neutro na libertação de prisioneiros e prestando ajuda humanitária a civis em áreas bloqueadas por grupos armados, entre outras atividades. O diálogo com grupos armados é, portanto, um imperativo humanitário, essencial para que o CICV cumpra a sua missão humanitária e realize atividades para aliviar e prevenir o sofrimento de pessoas que vivem em áreas controladas por grupos armados.

O diálogo do CICV com grupos armados é essencial por diferentes motivos. Primeiramente, para garantir o acesso seguro às populações afetadas em áreas controladas por grupos armados. Em segundo lugar, para promover a compreensão e a aceitação do CICV como uma organização independente, neutra e imparcial. Terceiro, visa incentivar a adesão ao Direito Internacional Humanitário (DIH), prevenindo e aliviando o sofrimento das vítimas. Por fim, o artigo 3º das Convenções de Genebra de 1949 menciona explicitamente o CICV como uma organização que pode oferecer os seus serviços a partes envolvidas em conflitos armados não internacionais, incluindo grupos armados não estatais.

O cenário de grupos armados pode evoluir de forma muito dinâmica, com conflitos surgindo e grupos ganhando ou perdendo território rapidamente. Como consequência, para cumprir a sua missão humanitária, o CICV realiza todos os anos uma pesquisa interna de grupos armados por meio das suas delegações. Esta pesquisa atende a vários propósitos: ajuda o CICV a avaliar o seu nível atual de diálogo com grupos armados, identifica tendências no comportamento desses grupos e avalia oportunidades para aprimorar os seus esforços de diálogo.

Este artigo apresenta as principais descobertas da pesquisa de 2024 sobre o diálogo do CICV com grupos armados. É importante observar que esses dados representam as prioridades e preocupações das delegações do CICV. Portanto, serve como avaliação operacional e não como um estudo científico. Esses números podem flutuar a cada ano devido a mudanças externas relacionadas a conflitos armados, ajustes nas prioridades operacionais do CICV e melhorias na metodologia da pesquisa.

Grupos armados em 2024

O CICV estima que, em 2024, existiam mais de 450 grupos armados que causavam preocupação humanitária globalmente. [1] Mais de 130 desses grupos são classificados como grupos armados não estatais. Esses grupos são considerados como partes de um conflito armado não internacional e, portanto, estão sujeitos ao Direito Internacional Humanitário (DIH). [2]

Como nos anos anteriores, a África tem a maior proporção de grupos armados. Em 2024, a África representava 44% do total de grupos (195). Do restante dos grupos armados, 20% estão localizados no Oriente Próximo e Médio (89), 18% nas Américas (84), 17% na Ásia e Pacífico (76) e 2% na Eurásia (11).

De acordo com a avaliação do CICV, o número de grupos armados que causam preocupação humanitária tem consistentemente excedido 450 nos últimos seis anos. O grande número de grupos armados aumentou substancialmente os complexos desafios operacionais que as organizações humanitárias enfrentam ao dialogar com grupos armados e tentar chegar às populações afetadas que vivem em áreas controladas por grupos armados.

Estima-se que, em 2024, a população global que vivia em áreas totalmente controladas ou disputadas por grupos armados tenha aumentado para 210 milhões de pessoas. Cerca de 83 milhões de pessoas viviam em áreas totalmente controladas por grupos armados e 127 milhões de pessoas viviam em áreas disputadas por grupos armados.

Como em 2023, quase metade da população global que vivia em áreas controladas por grupos armados estava localizada na África, com 102 milhões de pessoas (46 milhões em áreas sob controle total e 56 milhões sob controle disputado). No Oriente Próximo e Médio, 40 milhões de pessoas viviam em áreas controladas por grupos armados, estando a esmagadora maioria em áreas totalmente controladas (32 milhões em áreas sob controle total e 8 milhões sob controle disputado). Enquanto nas Américas, 41 milhões viviam em áreas controladas por grupos armados, a maioria em áreas disputadas (2 milhões em áreas sob controle total e 39 milhões sob controle disputado). O restante estava na Ásia, que tinha 26 milhões de pessoas vivendo em áreas controladas grupos armados (2 milhões em áreas sob controle total e 24 milhões sob controle disputado). Na Eurásia, 0,7 milhão de pessoas viviam em áreas totalmente controladas por grupos armados.

Uma tendência importante em 2024 é o aumento tanto no número de pessoas vivendo em áreas sob controle total de grupos armados quanto na parcela de grupos armados que controlam totalmente o território. Em comparação com 2023, 19 milhões de pessoas a mais viviam em áreas sob controle total de grupos armados, o que se explica principalmente pela expansão do controle territorial total de grupos armados em vários conflitos armados na África e na Ásia.

A parcela de grupos armados que controlava totalmente o território aumentou em 10% desde 2023, enquanto a proporção de grupos armados que disputavam o controle territorial diminuiu em uma porcentagem semelhante. Isso é motivado por um grande número de grupos armados em vários conflitos ganhando controle exclusivo de áreas anteriormente disputadas. O CICV estima que, em 2024, 26% dos grupos armados controlavam totalmente o território (117), enquanto 34% dos grupos armados disputavam o território (156). No mundo, houve diferenças regionais significativas onde os grupos armados que controlavam totalmente o território estavam localizados: 49% desses grupos estavam localizados na África (56), 28% nas Américas (32), 14% na Ásia (16), 9% no Oriente Próximo e Médio (9) e 2% na Eurásia (2).

Como parte da sua pesquisa sobre grupos armados, o CICV distingue entre a estrutura, a motivação e as ideologias de grupos armados para melhorar o enfoque e o diálogo com esses grupos. Embora relatar todas as descobertas seja muito numeroso para este blog, uma categoria de grupos armados que têm um impacto humanitário significativo são aqueles grupos cuja estrutura orientadora para as suas operações e ideologias é o islamismo. Em 2024, cerca 40% da população total vivia em áreas sob o controle desses grupos. Isso incluía pelo menos 38 milhões de pessoas vivendo em áreas totalmente controladas por grupos armados que têm o islã como uma estrutura orientadora para as suas operações e ideologias e outras 36 milhões residindo em áreas onde esses grupos disputavam o controle.

Um subconjunto distinto dessa categoria de grupos armados são os autodenominados grupos armados jihadistas vinculados à Al-Qaeda ou afiliados ao grupo do Estado Islâmico. Quase um quinto da população que vivia em áreas controladas por grupos armados estava sob o controle desses grupos jihadistas. Especificamente, isso representa 18% do total, aproximadamente 37 milhões de pessoas.

A proporção significativa de pessoas vivendo em áreas controladas por esses diferentes grupos ressalta a importância de investir recursos no diálogo com grupos que usam o islamismo como um marco de referência, fortalecendo a compreensão do CICV sobre a lei islâmica como uma raiz de contenção e desenvolvendo o trabalho pioneiro do CICV na construção de pontes entre o Direito Internacional Humanitário e a lei islâmica.

Muitos grupos armados que controlam territórios — e até mesmo alguns que não o fazem — proporcionam um grau de governança e serviços de fato nas áreas que controlam. Em 2024, 80% dos grupos armados proporcionaram serviços públicos e/ou recolhiam impostos da população sob seu controle (365). Assim como no ano anterior, o detalhamento regional mostra que 157 grupos armados na África proporcionam serviços públicos ou extraem impostos, 81 nas Américas, 51 na Ásia e 65 no Oriente Próximo e Médio.

De todos os grupos armados, mais de 56% aplicam medidas de segurança (253), 51% impõem alguma forma de tributação (233) e 34% oferecem alguns mecanismos de justiça ou resolução de litígios (154). A prestação de serviços mais complexos — como a prestação de apoio social (proporcionada por 103 dos grupos armados, isto é, 23%), assistência à saúde (63, 14%), educação (63, 14%), serviços públicos (39, 9%) ou documentação legal (19, 4%) — tendem a ser prestados por grupos armados que têm controle territorial completo e há muito estabelecido sobre uma área. No entanto, com base apenas nesta pesquisa, o CICV não pode avaliar como esses serviços são percebidos pela população que vive em áreas controladas por grupos armados, o grau de acesso das populações a esses serviços e a abrangência da cobertura dos serviços públicos no território de um grupo armado.

No entanto, esses números ressaltam o amplo controle territorial exercido por grupos armados e a escala global da população que vive sob tal controle. As pessoas que residem em territórios governados por grupos armados enfrentam vulnerabilidades complexas e riscos específicos. Esses riscos englobam a sua proximidade com hostilidades, o que aumenta a probabilidade de vítimas ou ferimentos civis; acesso limitado ou inexistente a infraestrutura e serviços essenciais; a ameaça de bloqueios, cercos ou sanções que diminuem ainda mais a disponibilidade de necessidades e serviços vitais; e a ausência de autoridades governamentais, fazendo com que obter documentação legal essencial seja um desafio para a população civil.

Apesar de alguma prestação de serviços por grupos armados, as necessidades básicas da população em áreas controladas por muitos grupos armados muitas vezes não são totalmente atendidas. Portanto, o acesso, o diálogo e a interação com grupos armados em uma série de questões de assistência, legais e de proteção — como a proteção de pessoas detidas, o restabelecimento de contatos familiares e, mais amplamente, o tratamento de populações de acordo com o Direito e os padrões internacionais — são essenciais para que o CICV entenda e atenda às necessidades humanitárias dessa população.

Diálogo do CICV com grupos armados em 2024

Estabelecer um diálogo bem-sucedido com um grupo armado é um esforço complexo com obstáculos significativos. No entanto, é imperativo que o CICV cumpra o seu mandato humanitário para aliviar e prevenir o sofrimento de pessoas que vivem em áreas afetadas por conflitos armados.

Em 2024, o nível de contato do CICV com grupos armados permaneceu estável em comparação ao ano anterior. O CICV manteve contato com quase 60% de todos os grupos armados que causam preocupação humanitária. O contato pode assumir várias formas e levar ao diálogo sobre diferentes questões. Atualmente, o CICV tem um diálogo operacional com pelo menos metade de todos os grupos armados (54%), focado na negociação de garantias de acesso e segurança. Além disso, a Organização realiza sessões de difusão com mais de um terço dos grupos armados (34%) e levanta preocupações específicas de proteção com aproximadamente um terço de todos os grupos armados (30%), visando proteger indivíduos afetados por conflitos armados e outras situações de violência e trabalhar para a conformidade desses grupos com o DIH ou outras normas e padrões, conforme aplicável.

Com base no trabalho do CICV para entender as fontes de influência no comportamento de grupos armados, a Organização identificou vários fatores que impactam a nossa capacidade de estabelecer um diálogo bem-sucedido com um grupo. Isso inclui a região geográfica onde um grupo armado opera, a sua estrutura organizacional e o grau de controle que exerce sobre o território. Em geral, o CICV mantém uma comunicação mais frequente e direta e conduz uma gama mais ampla de atividades de proteção e prevenção, como visitar pessoas detidas, reunir famílias e difundir o DIH e outros marcos jurídicos, com grupos armados que são partes de conflitos armados. Isso também é particularmente verdadeiro para grupos profundamente enraizados nas suas comunidades ou aqueles que detêm controle total sobre o território por quatro anos ou mais.

Em 2024, o CICV ampliou o seu diálogo com os “hackers civis” (também chamados de “hacktivistas” ou “hackers patrióticos”) que estão cada vez mais envolvidos em conflitos armados. Centenas desses grupos supostamente operaram em conflitos armados recentes. Com base na sua longa experiência jurídica em operações cibernéticas durante conflitos armados, o CICV começou a difundir o DIH aplicável a essas operações por meio de comunicação pública, diálogo direto com alguns grupos e conscientização dos Estados sobre o assunto.

Desafios para o diálogo em 2024

Embora os níveis atuais de diálogo do CICV com grupos armados sejam significativos, a Organização encontra desafios que dificultam a sua capacidade de dialogar efetivamente com alguns desses grupos. A situação de segurança e as consequências negativas percebidas no relacionamento do CICV com o Estado continuam sendo os dois obstáculos globais mais comuns ao diálogo com grupos armados. A situação de segurança no país impacta negativamente o diálogo com 50% dos grupos armados (228) e as limitações impostas pelos Estados restringem o diálogo com 48% dos grupos armados (213).

A listagem de grupos armados como “terroristas” pelos Estados nos quais o grupo armado opera continua tendo um impacto claro e prejudicial na capacidade do CICV de estabelecer um diálogo com grupos armados. No nível global, mais de um quarto dos grupos armados são listados internamente como grupos “terroristas” (126, isto é 28%). Destes 126 grupos armados que são listados como “terroristas” internamente, o diálogo é impossível por causa desta listagem com 18% (23, 5% do total) e restrito com 45% (80, 18% do total).

Em 2024, a relutância de grupos armados em estabelecer um diálogo com o CICV não foi, como nos anos anteriores, uma barreira significativa ao diálogo. Na verdade, o diálogo se torna totalmente impossível com apenas 5% dos grupos armados devido à sua relutância. Isso é significativo, pois doadores, Estados ou outras organizações humanitárias quase sempre citam a relutância de um grupo armado em estabelecer diálogo com organizações humanitárias como uma razão pela qual eles não financiam, facilitam ou mesmo tentam dialogar com grupos armados

Em 2024, é evidente que os Estados impõem mais desafios ao diálogo com grupos armados. Na verdade, ano após ano houve um aumento de 7% em casos de Estados que limitam totalmente o diálogo com grupos armados. Infelizmente, o CICV não pode fazer muito para ampliar o diálogo por meio de mudanças na atual situação de segurança. No entanto, essas descobertas sobre o impacto negativo dos obstáculos impostos pelo Estado e da centralidade da listagem como terroristas no diálogo reforçam a necessidade do CICV e de outras organizações humanitárias de continuarem os esforços para proteger e fortalecer o espaço humanitário, fortalecendo a defesa com Estados e entidades multilaterais para reduzir esses obstáculos.

Isso pode ser alcançado mediante a inclusão de cláusulas de isenção humanitária na legislação antiterrorismo que não criminalizem o diálogo com grupos armados ou o apoio que o CICV oferece às populações que vivem sob o controle de grupos armados, em particular na legislação nacional. Além disso, é crucial continuar persuadindo as autoridades a facilitarem o diálogo do CICV com grupos armados nos seus territórios.

A adoção da Resolução 2664 do Conselho de Segurança das Nações Unidas em 2022, que permite uma isenção humanitária em medidas de congelamento de ativos impostas pela ONU e outros regimes de sanções multinacionais, juntamente com a introdução de licenças gerais adicionais e isenções humanitárias por Estados em resposta a esta Resolução, representa um avanço potencialmente importante no enfrentamento deste desafio significativo nos próximos anos. No entanto, a extensão do seu impacto precisará ser monitorada e pode depender da eficácia desta Resolução quando for colocada em prática.

Referências:

[1] No uso do CICV, o termo genérico “grupo armado” denota um grupo que não é um Estado, mas tem a capacidade de causar violência que causa preocupação humanitária. Isso inclui aqueles grupos que são classificados como grupos armados não estatais, pois se qualificam como partes de um conflito armado não internacional.

[2] Para a qualificação de grupos armados não estatais e para a necessidade de diálogos com grupos armados, consulte Por que estabelecer diálogo com grupos armados não estatais? | Comitê Internacional da Cruz Vermelha (icrc.org) (em inglês).

Veja também:

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