Com base nas observações do CICV dentro e ao redor de cidades em conflito em todo o mundo, uma forma evoluída de um dos mais antigos métodos de combate – cercar e sitiar – persiste nas batalhas travadas atualmente em zonas urbanas. Populações civis encurraladas em áreas sitiadas ou deslocadas delas enfrentam algumas das mais horríveis condições humanitárias.
Neste texto, Abby Zeith, assessora jurídica do CICV, analisa os cercos e sítios urbanos contemporâneos e os danos que eles causam às populações civis, expõe como o Direito Internacional Humanitário (DIH) regulamenta esses métodos de combate e explica por que os Estados – seus responsáveis por elaborar políticas e suas forças armadas – precisam se empenhar mais para entender e se preparar para mitigar os danos causados por essas operações a civis.
Para muitos, o termo “cerco” pode evocar imagens históricas da devastação de Cartagena, da Babilônia ou de Leningrado, quando pessoas civis e forças sitiadas ficaram presas dentro de uma cidade murada, de um castelo ou de outra fortificação, se defendendo depois de terem sido isoladas por forças que as encurralaram. Com frequência, as pessoas isoladas não têm outras opções além de se render, submeter-se a ataques e bombardeios ou sucumbir à fome ou às doenças causadas por privações extremas.
Como visto nos recentes conflitos urbanos na África, na Ásia, na Europa e no Oriente Médio, o cerco e outras táticas de sitiar ainda têm um lugar de destaque nos campos de batalha atuais. Pesquisas indicam que, desde o início da década de 1990, ocorreram mais de 60 cercos urbanos de distintos tamanhos e duração. No entanto, se comparadas com a guerra de cerco de uma era que praticamente ficou no passado, as considerações políticas e as formas de lutar nas cidades evoluíram. O quadro jurídico que as rege também.
A noção de “sítio” e “cerco”
Os tratados do DIH referem-se a zonas “sitiadas” ou “cercadas”, mas não as definem (por exemplo, artigo 27 dos Regulamentos de Haia de 1907, artigos 15(2) da CG I, 18(2) da CG II e 17 da CG IV).
O sítio – ou cerco, como é frequentemente denominado por algumas doutrinas militares de combate – pode ser descrito como “uma tática para cercar as forças armadas de um inimigo, a fim de impedir que se movimentem ou de isolá-las dos canais de apoio e abastecimento” (relatório de 2019 do CICV sobre os desafios para o DIH, p. 23). Descrições semelhantes foram encontradas em alguns manuais de direito militar dos conflitos armados (por exemplo, Nova Zelândia [8.10.1]; Estados Unidos [5.19.1]).
Em geral, o objetivo de um cerco urbano é isolar e desgastar uma força sitiada até o ponto em que ela seja forçada a se render ou bater em retirada. A força sitiada também pode ser “destruída” (para usar um “verbo de tarefa de missão” frequentemente citado pelas forças armadas).
Historicamente, isso ocorreu fazendo com que cidades inteiras passassem fome de modo indiscriminado, em conjunto com ataques persistentes para negar o acesso a reforços, enfraquecer as defesas sitiadas e induzir a rendição. Nos conflitos contemporâneos, embora a privação continue sendo uma característica do cerco, as forças sitiantes costumam tentar assumir o controle da área urbana sitiada e limpá-la matando, capturando ou forçando a retirada das forças sitiadas por meio de combates intensos.
Se não tentar capturar uma área por meio de ataques, um cerco pode ter como objetivo obter uma vantagem militar em relativa segurança para as forças sitiantes, como ocorreu em Baçorá em 2003. Embora sejam muito menos empregadas pelas forças atualmente, essas táticas podem poupá-las dos perigos dos combates urbanos e, em determinadas condições, podem limitar as baixas civis e os danos à infraestrutura de caráter civil provocados pelos combates em áreas povoadas. Mesmo assim, essas operações provocam destruição e baixas civis, além de outras formas de danos e privações para a população civil.
A maioria dos cercos atuais envolve tentativas de tomar uma área urbana e derrotar seus defensores por meio de ataques e bombardeios pesados. Isso tem consequências devastadoras para a população civil, especialmente se as forças sitiadas numa cidade não tiverem muitas opções além de combater a missão de desgaste ou se render. O professor de estudos de guerra Anthony King caracterizou essas batalhas como “cercos de zonas urbanas do século 21” ou “microcercos localizados” desde abaixo do nível da rua até o espaço aéreo acima. Ele observa:
Hoje, as cidades envolvem as forças armadas. Os exércitos simplesmente não são grandes o suficiente para cercar cidades inteiras. As batalhas por cidades agora ocorrem dentro das próprias cidades, à medida que as forças restringidas convergem para pontos decisivos. Como as forças armadas encolheram, a batalha urbana se aglutinou numa série de microcercos localizados, em que os combatentes lutam por edifícios, ruas e distritos. Em vez de frentes de batalha que dividem uma cidade inteira, os cercos eclodem em lugares pontuais. O campo de batalha urbano é pontilhado de combates localizados.
Cercos localizados também podem ocorrer dentro de uma área sitiada mais ampla, como foi o caso da siderúrgica Azovstal durante o cerco de Mariupol.
Cercos causam um sofrimento humano indescritível
No cerco e em outras formas de sítio costuma haver bombardeios, inclusive com diversas armas explosivas pesadas, e combates intensos entre as forças sitiantes e sitiadas, o que gera um perigo constante para as pessoas civis encurraladas. Diversos obstáculos à passagem de mercadorias – como postos de controle, atividades de obstrução realizadas pelas forças armadas, fogo de interdição – impedem que suprimentos essenciais para a sobrevivência da população civil entrem numa área sitiada. Pouca ou nenhuma eletricidade e a degradação de outros serviços básicos também são características comuns. Devido à pouca disponibilidade de alimentos, água e assistência à saúde, as famílias são obrigadas a fazer escolhas impossíveis. Fatores como idade, gênero e deficiências podem exacerbar as dificuldades de acesso aos escassos recursos. As preocupantes consequências humanitárias são cumulativas e duradouras: fome, desnutrição, desidratação, doenças e enfermidades, lesões – que, com frequência, incluem danos mentais a longo prazo – e morte.
Embora tenham características semelhantes, não existem dois cercos iguais. Eles diferem em termos de tamanho, magnitude, localização, natureza, intensidade e partes envolvidas. É importante ressaltar que as consequências humanitárias sofridas pelas pessoas encurraladas dependem, inter alia, da intensidade e localização das hostilidades; da natureza das restrições de circulação impostas a civis e a combatentes feridos e doentes; da disponibilidade de mecanismos locais de enfrentamento; da resiliência dos sistemas de serviços básicos inter-relacionados dos quais a população depende para atender às suas necessidades e viver em segurança em ambientes urbanos – como eletricidade, saúde, tratamento de água e esgoto, descarte de resíduos sólidos –, bem como dos sistemas de mercado que fornecem alimentos e itens essenciais, comunicação, sistemas financeiros, transporte de pessoas e bens; da medida em que ajuda humanitária e artigos básicos podem entrar e pessoas civis podem sair da área; e da prevalência de contrabando e suborno.
Muitas vezes se esquece que, para a população civil, as consequências não se limitam simplesmente à força, ao terreno ou às pessoas e infraestruturas de caráter civil dentro de uma área sitiada ou cercada. De acordo com um especialista militar, “como se apertássemos um balão, um cerco em um lugar redistribui a miséria e o sofrimento para outros lugares”[1]. Arrancadas de suas comunidades, as pessoas que fogem de áreas sitiadas perdem seus lares e meios de subsistência. Muitas vezes, são forçadas a depender do apoio de famílias e comunidades que as recebem, embora também estejam sofrendo com o conflito. Como aconteceu em Mossul, grandes afluxos de pessoas de zonas urbanas podem exacerbar os problemas pré-existentes de emprego e mercados, de moradia, de infraestrutura, de acesso à terra, de gestão de resíduos e de outros serviços públicos nos bairros afetados. A magnitude das necessidades geradas pelo deslocamento urbano em larga escala costuma superar amplamente a capacidade das organizações humanitárias de atendê-las.
Além disso, a doutrina militar, apoiada pela prática operacional atual, indica que os locais de apoio de base, sustentação e fogo para ambas as partes, bem como os atores que os apoiam, provavelmente ficam fora da área cercada. Esses objetivos podem até estar em outros terrenos urbanos. As consequências dos ataques realizados pela parte sitiada/cercada impõem – tanto à população civil nesses lugares quanto aos bens de caráter civil dos quais ela depende – riscos que precisam ser levados em consideração no planejamento operacional e mitigados adequadamente.
Como o DIH regula os cercos e sítios urbanos contemporâneos?
O modo como as partes beligerantes conduzem os cercos e sítios urbanos contemporâneos evoluiu ao longo dos anos por uma série de razões. O quadro jurídico os rege, também.
Em primeiro lugar, os avanços do direito internacional (em particular depois da Segunda Guerra Mundial) restringiram significativamente o que as partes beligerantes podem fazer durante os cercos urbanos. Sem sombra de dúvida, o modo como o cerco era tradicionalmente executado nas guerras, sem discriminar entre a população civil e as forças armadas do inimigo, está proibido hoje (consultar aqui uma análise interessante do direito e dos costumes que regeram o cerco e sua evolução ).
Hoje, os cercos devem ter como alvo exclusivamente as forças armadas de um inimigo: pode-se, por exemplo, sitiar uma área onde haja apenas forças inimigas ou bloquear seus reforços ou seu reabastecimento. Infelizmente, pessoas civis costumam ficar encurraladas quando cidades ou outras áreas povoadas são sitiadas ou cercadas, o que causa um sofrimento indescritível.
Recentemente, o CICV publicou uma breve explicação sobre como o DIH oferece proteção vital a essas pessoas civis porque impõe limites ao que as partes podem fazer durante esses cercos. Esta explicação resume o posicionamento jurídico do CICV, publicado com muito mais detalhes em seu relatório de 2019 sobre os desafios para o DIH. Alguns pontos precisam ser particularmente destacados:
- As partes beligerantes devem permitir que civis saiam das áreas sitiadas ou cercadas.
Ao longo da história, as forças sitiantes e sitiadas impediram que pessoas civis saíssem das áreas cercadas. Para as forças sitiantes, o objetivo principal era acelerar a rendição das forças sitiadas, porque a população civil depende dos mesmos suprimentos que as forças inimigas. Nos julgamentos de Nuremberg, a prática de usar artilharia para impedir que civis abandonassem uma área sitiada foi considerada uma medida extrema, mas não ilegal.
Essas práticas não refletem mais o direito atual. A legislação evoluiu inclusive além das disposições essenciais, embora limitadas, das Convenções de Genebra sobre a evacuação de categorias específicas de pessoas vulneráveis de áreas sitiadas (artigo 15 da CG I, artigo 18 da CG II e artigo 17 da CG IV).
Pelos motivos detalhados pelo CICV no relatório de 2019 (pp. 23-24), uma combinação de várias proibições (atacar civis, realizar ataques indiscriminados, usar escudos humanos, fazer com que a população civil passe fome como método de guerra) e as normas decorrentes do princípio de precaução deixam bem claro: as pessoas civis não devem ficar presas em cercos, e ambas as partes devem permitir que elas saiam das áreas sitiadas e cercadas.
Os apelos generalizados para que civis fossem evacuados de modo seguro e irrestrito durante as hostilidades em cidades na Ucrânia e as resoluções das Nações Unidas sobre a Síria demonstram que esse imperativo conta com um amplo apoio entre os Estados. Vários especialistas jurídicos (acadêmicos, militares, humanitários) também apoiam a existência da obrigação de permitir que civis abandonem áreas sitiadas e cercadas.
Apesar disso, visões divergentes ainda aparecem nos manuais de direito militar dos conflitos armados. Vários manuais parecem confirmar expressamente a existência dessa obrigação (por exemplo, Dinamarca (§2.12), França (§5.5.4); Israel; Estados Unidos (§5.19.4.1)). Infelizmente, alguns manuais parecem se referir apenas às disposições das Convenções de Genebra, que se limitam a tratar da evacuação de certos grupos vulneráveis (por exemplo, Nova Zelândia), enquanto outros continuam deixando a critério do comandante permitir a saída de pessoas civis (por exemplo, Austrália, Canadá e Reino Unido), o que, de acordo com o CICV, é uma visão desatualizada que não reflete mais o estado atual do direito. Também é preocupante que alguns manuais de direito militar dos conflitos armados nem sequer mencionem o cerco.
Os Estados – particularmente aqueles que estiverem revisando seu manual de direito militar dos conflitos armados – precisam dar mais atenção a este assunto e devem afirmar, em termos inequívocos, que as pessoas civis têm o direito de sair de áreas sitiadas e cercadas.
- Durante a fuga ou evacuação de uma área sitiada ou cercada, as pessoas civis estão sempre protegidas.
Durante a fuga ou evacuação temporária de uma área sitiada ou cercada, as pessoas civis estão protegidas. Elas não podem ser atacadas. Em caso de deslocamento, todas as medidas possíveis devem ser tomadas para que essas pessoas sejam recebidas com condições satisfatórias de alojamento, higiene, saúde, segurança e nutrição e para que os membros da mesma família não sejam separados. Caso a parte sitiante decida triar as pessoas deslocadas por motivos de segurança, essas medidas devem ser conduzidas com total respeito ao DIH e ao direito dos direitos humanos.
As evacuações são estritamente limitadas pelo DIH. As evacuações forçadas só podem ocorrer quando exigido pela segurança da população civil envolvida ou por razões militares imperiosas, e só podem ser temporárias. As pessoas deslocadas, quer tenham fugido ou tenham sido evacuadas, têm o direito de regressar voluntariamente e em segurança a seus lares ou locais de residência habitual assim que os motivos do deslocamento deixarem de existir. Como as hostilidades durante os cercos implicam um alto risco de baixas civis incidentais, as evacuações temporárias podem ser necessárias e até mesmo exigidas juridicamente, mas os cercos não devem ser usados para obrigar a população civil a abandonar permanentemente uma determinada área.
- A população civil e as pessoas feridas e doentes que permanecem em áreas sitiadas ou cercadas devem ser protegidas.
A população civil e as pessoas feridas e doentes que permaneçam em uma área sitiada, independentemente do motivo, continuam estando protegidas. Tanto as forças sitiadas quanto as forças sitiantes devem respeitar normas importantes que protegem civis das consequências das hostilidades, como os princípios de distinção, proporcionalidade e precauções, a proibição de usar escudos humanos e as regras que proporcionam proteção específica às pessoas feridas e doentes.
Além disso, as normas do DIH sobre fome e sobre operações de socorro e acesso humanitário buscam garantir – juntas – que a população civil não seja privada de suprimentos essenciais para sua sobrevivência nem seja forçada a passar fome.
O chamado “imperativo de isolamento” no cerco
Foi proposto que relatos históricos (por exemplo, Leningrado, Grósnia e Sarajevo) confirmam que o “isolamento absoluto” – que inclui impedir que as forças cercadas tenham acesso a linhas de operação, comunicação e apoio logístico, além de controlar o acesso à área sitiada – é a “condição sine qua non” de um cerco eficaz. Os defensores desse argumento parecem sugerir que qualquer coisa aquém disso daria ao adversário o alívio necessário para manter sua posição defensiva, o que poderia estender o cerco indefinidamente e impedir uma vitória decisiva.
De acordo com essa perspectiva, o imperativo militar de alcançar e manter o isolamento completo (que é primordialmente físico, mas também pode incluir facetas psicológicas e eletrônicas) é a consideração mais importante em um cerco e, possivelmente, a base para o “alcance limitado e a promessa humanitária reduzida” do DIH que rege a condução dessa tática. Argumenta-se que o chamado “imperativo de isolamento” pode ser invocado por uma força sitiante como fundamento para rejeitar ofertas de ajuda humanitária ou para se recusar a permitir a evacuação temporária de civis de áreas sitiadas. De acordo com algumas partes beligerantes, as hipóteses sobre a vantagem militar prevista ao alcançar o isolamento completo podem até impactar as decisões da força sitiante a respeito da escolha de alvos, da proporcionalidade e das precauções no ataque.
No entanto, como será demonstrado abaixo, os argumentos do “imperativo de isolamento” que buscam privilegiar as considerações militares em detrimento dos imperativos humanitários nos cercos e sítios urbanos contemporâneos não devem ser aceitos sem uma análise mais aprofundada de sua legalidade, validade militar e praticidade.
Em primeiro lugar, embora o isolamento possa ser uma prioridade militar, ele não pode ser considerado no vácuo, como outros também afirmam. Ele precisa ser analisado à luz do quadro jurídico contemporâneo. Essas obrigações se aplicam a todos os meios e métodos de combate; não há exceção para os cercos. Independentemente de que um cerco ou sítio seja percebido como a batalha “decisiva” no contexto de uma campanha geral ou de uma operação militar de grande porte, as partes beligerantes sempre devem seguir à risca as normas que regem a condução das hostilidades e têm como objetivo proteger pessoas civis e bens de caráter civil. Além de serem relevantes ao planejar e decidir sobre ataques contra objetivos militares dentro ou a partir de uma área urbana sitiada (principalmente que certas precauções sejam viáveis e as questões de proporcionalidade no ataque), essas normas também dizem respeito às decisões sobre restringir a ajuda humanitária e a condução de evacuações.
Além disso, as partes beligerantes devem assumir a responsabilidade de que, na verdade, a população civil é que mais sofre as consequências das táticas do cerco. É importante ressaltar que tirar proveito do sofrimento de pessoas civis encurraladas em áreas sitiadas é incompatível com o DIH contemporâneo. De acordo com a perspectiva do CICV, é proibido usar a fome como método de combate de modo indiscriminado, ou seja, quando a privação de alimentos, água ou outras coisas necessárias para a sobrevivência não puder ser ou não for direcionada exclusivamente às forças armadas inimigas. Uma força sitiante também não pode justificar a decisão de deixar a população civil passar fome deliberadamente alegando que seu propósito específico era que apenas os combatentes inimigos na mesma área passassem fome.
Além disso, o comandante de uma força sitiada que não puder fornecer os suprimentos essenciais para a sobrevivência da população civil sob seu controle e o comandante de uma força sitiante devem permitir e facilitar a passagem rápida e desimpedida de ajuda humanitária para as pessoas civis que permanecerem na área sitiada (por exemplo, França (§5.5.4); Canadá §614(7): Israel). Isso está sujeito ao direito de controle e à capacidade das partes de impor as restrições temporárias e limitadas geograficamente que forem exigidas pela necessidade militar no momento e no local das hostilidades.
Em segundo lugar, algumas considerações (por exemplo, Dannenbaum pp. 389-390 e Lattimer) questionam as alegações ditas empíricas de que “métodos de fazer passar fome” ilegais – como bloquear completamente a entrada de suprimentos essenciais – são necessários para superar as forças inimigas em áreas urbanas bem defendidas. Essas perspectivas contestam o enquadramento binário em que as únicas opções disponíveis para as forças armadas são “o ataque militar com todas as forças ou fazer passar fome com um cerco abrangente”. Isso sugere que pode haver abordagens alternativas para “conter as forças inimigas, minar sua capacidade de fazer um ataque a partir desse local e impedir que se instalem em outro lugar”.
Além disso, as forças sitiantes que pretendem justificar as restrições à ajuda humanitária ou se recusam a permitir que civis saiam das áreas sitiadas com base no pressuposto de que, historicamente, os cercos dependiam de encurralar civis para acelerar a rendição das forças sitiadas (porque a população depende dos mesmos suprimentos que as forças inimigas) parecem estar desconectadas da realidade de como a guerra urbana contemporânea é conduzida, com frequentes ataques armados combinados nos cercos em áreas urbanas.
Em terceiro lugar, se o “isolamento absoluto” realmente fosse a “condição sine qua non” de um cerco bem-sucedido do ponto de vista militar, a probabilidade de sucesso dessa tática seria questionada, devido aos desafios práticos de isolar uma cidade moderna hoje. Até mesmo especialistas militares admitem que é um equívoco comum achar que os cercos modernos exigem o cerco total ou o isolamento completo. Isso raramente é verdade. O fato de um cerco ser poroso ou pretender ser impermeável pode depender, entre outras coisas, dos objetivos políticos e militares, das forças e capacidades disponíveis e do tamanho do cerco. Por exemplo, a ausência de um cerco total pode dever-se à insuficiência de pessoal ou recursos materiais para cercar completamente uma cidade ou a uma decisão deliberada sobre como um determinado ator quer que um cerco evolua.
Responsáveis por elaborar políticas, estrategistas e profissionais militares devem se empenhar mais para evitar danos à população civil nos cercos urbanos contemporâneos
Como observado no começo deste texto, pesquisas indicam que, desde o início dos anos 1990, as partes beligerantes empregaram ou se envolveram em cerca de 60 cercos urbanos em todo o mundo e em todos os níveis de operações.
Cercos ou outras formas de sítio também podem fazer parte de um plano operacional maior: por exemplo, podem ser usados para isolar forças inimigas deslocadas que estejam abrigadas numa área específica. Muitas vezes, são a consequência previsível da decisão de levar o combate para o terreno urbano ou de se defender dentro dele. Os cercos urbanos atuais se concentram no terreno (ou seja, seu principal objetivo é controlar áreas estratégicas) ou no inimigo (ou seja, seu principal objetivo é derrotar – e não apenas conter – as forças inimigas). Às vezes, ambos os objetivos se combinam. O fato de um cerco ser tático, operacional ou estratégico deve afetar diversos aspectos dele, inclusive seu planejamento e, por sua vez, as precauções que podem ser tomadas de forma viável.
Apesar de ser uma característica comum da guerra urbana contemporânea, a doutrina de combate faz pouca ou nenhuma referência ao cerco em si. Como mencionado no início, é mais provável encontrar na doutrina militar referências à noção de “operações de cerco”. Por exemplo, a publicação de técnicas do Exército dos EUA 3-06, operações urbanas, [7-46]) vincula a defesa urbana às táticas de isolamento empregadas por uma força atacante ao aludir a atividades típicas de cercos:
Operações de cerco são aquelas em que uma força perde sua liberdade de manobra porque uma força oposta consegue isolá-la ao controlar todas as linhas terrestres de comunicação e reforço (ADP 3-90). Em áreas urbanas, este controle de cerco precisa assegurar todos os portais relevantes de instalações subterrâneas dentro ou ao redor da área de cerco que tem como objetivo. As unidades consideram restringir brevemente os serviços (como água, eletricidade ou telecomunicações) de uma área cercada para obter posições de vantagem; no entanto, as unidades devem restabelecê-los para não causar danos indevidos a civis.
Fica claro que, quando a guerra se muda para zonas urbanas, a disputa para controlar ou defender uma cidade (ou partes dela) costuma se tornar uma lenta e angustiante batalha de desgaste por posicionamento que se assemelha a um cerco ou sítio – independentemente de como queiram chamá-la. Nem sempre o cerco urbano é o objetivo do treinamento ou da preparação de uma força; ele pode ser uma resposta a uma situação que surgiu e, às vezes, até mesmo o resultado de um mau planejamento ou de táticas ruins. De fato, grande parte do enorme sofrimento civil causado por tais operações pode ser atribuído ao efeito cumulativo de uma série de decisões de nível tático, que nem sempre apoiam os objetivos militares estratégicos. A falta de preparação para o inevitável agrava os danos para a população civil.
Especialistas em guerra urbana que reconheceram o ressurgimento do cerco e sua evolução culpam “as tentativas de contornar o problema do cerco na linguagem e na prática” pela inadequação da doutrina atual que, por sua vez, não ajuda os profissionais militares a entender e se preparar para tais operações. Por exemplo, Fox e Watkins expressam preocupação com o fato de que as forças armadas “não tenham, do ponto de vista tático e jurídico, uma estrutura para operar em um cerco” embora tenham participado de vários cercos nos últimos anos. Estes especialistas incentivam os Estados e suas forças armadas a “elaborar uma doutrina compatível com o cerco com base no direito internacional para se preparar melhor para os rigores da guerra em um cenário de cerco”.
Assim como diversos outros especialistas em guerra urbana, organizações não governamentais e acadêmicos, o CICV considera que já passou da hora de fazer uma reflexão mais completa sobre como as partes beligerantes conduzem os cercos e sítios urbanos contemporâneos, particularmente em relação às questões jurídicas e humanitárias. Inclusive, o CICV fez um apelo para que os Estados elaborem uma doutrina específica de guerra urbana. Também é preciso um maior empenho para treinar e se preparar para fazer evacuações organizadas de civis de áreas sitiadas e cercadas; essas operações são complexas e, com frequência, repletas de dilemas tanto para as forças armadas quanto para atores humanitários. O CICV publicou um manual para comandantes militares sobre a redução de danos à população civil na guerra urbana, que contém anexos específicos sobre evacuações e triagens, e um manual para grupos armados não estatais. Mais recentemente, o CICV publicou o relatório de uma reunião de especialistas e um conjunto de recomendações sobre medidas para prevenir e mitigar as consequências indiretas para os serviços básicos do uso de armas explosivas pesadas que, como já foi mencionado, são de grande preocupação quando usadas em cercos urbanos. Recomendamos que autoridades políticas, forças armadas e grupos armados não estatais tenham esses documentos em conta.
Uma boa notícia foi o seminário organizado em 2022 pelo Programa de Direito Internacional e Conflitos Armados, da Faculdade de Direito de Harvard, pelo Instituto Lieber, de West Point, e pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Este seminário reuniu diversos especialistas dos setores jurídico, humanitário, acadêmico e militar para debater algumas dessas questões (consultar um resumo preparado por dois dos participantes). Espera-se que esses debates continuem nos próximos anos.
O futuro da guerra é repleto de incertezas. Ainda estamos descobrindo como os avanços tecnológicos estão afetando o campo de batalha ou mudando o modo como as guerras são travadas nas cidades. Dito isto, o que sabemos, com base em nossas observações dentro e ao redor de cidades em conflito em todo o mundo, é que uma forma evoluída de um dos mais antigos métodos de combate – cercar e sitiar – persiste na guerra urbana.
Populações civis encurraladas em áreas sitiadas ou deslocadas delas vão continuar enfrentando algumas das mais horríveis condições humanitárias. É urgente que os Estados e suas forças armadas reflitam mais profundamente sobre como prevenir e mitigar as devastadoras consequências humanitárias causadas por esses métodos e que garantam que o modo como são empregados respeite indefectivelmente o DIH contemporâneo.
Nota da autora: A autora gostaria de agradecer a Laurent Gisel e Amos Fox, assim como a vários colegas do CICV, seus comentários valiosos sobre os primeiros esboços deste texto.
[1] Amos Fox, palestra sobre cercos na guerra moderna, apresentada na Faculdade de Direito de Harvard, em 31 de março de 2022. Publicada on-line pelo autor.
Veja também:
- Laura Boillot, Laurent Gisel, Paul Holtom, Frederik Siem, Dina Abou Samra, Juliana Helou van der Berg, Protecting civilians in conflict: the urgency of implementing the Political Declaration on Explosive Weapons in Populated Areas, 22 de abril de 2024
- Ruben Steward & Celia Edeline, The NSAG handbook: helping non-State armed groups reduce civilian harm during urban warfare, 30 de março de 2023
- Eirini Giorgou, Explosive weapons with wide area effects: a deadly choice in populated areas, 25 de janeiro de 2022
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