Skip to main content
pt-br
Fechar
Em vez de tomar partido, tomar providências: benefícios da neutralidade humanitária na guerra

Aeroporto de Sayoun, Sanaa, Iêmen. Ex-detidos descem de avião fretado pelo CICV e se reúnem com familiares. O papel do CICV na operação de libertação foi agir como intermediário neutro no transporte dos ex-detidos. Abdellah Alhebshi, CICV, 2020.

Neste texto – que faz parte da nova série “De volta ao básico: princípios humanitários no conflito armado contemporâneo” e é lançado em conjunto com Just Security – a diretora do Centro de Pesquisa e Experiência Operacional (CORE, na sigla em inglês) do CICV, Fiona Terry, explica como, graças a uma experiência em primeira mão, deixou de duvidar da neutralidade e passou a acreditar firmemente no propósito e na utilidade de adotar uma postura neutra na guerra.

A cada dez anos, mais ou menos, o princípio humanitário da neutralidade é atacado. Eu entendo o porquê: eu mesma o ataquei há duas décadas em um texto para um debate interno de Médicos Sem Fronteiras (MSF) sobre a possibilidade de remover o princípio da neutralidade da carta de princípios de MSF.

Eu defendia a remoção. Argumentei que permanecer neutro diante do genocídio e dos crimes de guerra era imoral porque equivalia a colocar os opressores e suas vítimas em pé de igualdade. Argumentei que a neutralidade ratifica a lei do mais forte, citando os bósnios muçulmanos que, na década de 1990, gritavam com raiva: “Não precisamos de vocês, precisamos de armas para nos defender… Ajuda na forma de alimentos e remédios só serve para que a gente morra com saúde.” Afirmei que os esforços de MSF para deter as atrocidades por meio da denúncia pública são incompatíveis com o respeito ao requisito da neutralidade de “abster-se de tomar parte em controvérsias de natureza política ou ideológica” e argumentei que a verdadeira medida da neutralidade era sua aceitação por ambos os lados de um conflito, o que é muito difícil de garantir. Pelo menos a respeito deste último ponto eu estava certa: as percepções de neutralidade são de fato difíceis de garantir, e isso se tornou ainda mais árduo agora que as redes sociais colocam lenha na fogueira – muitas vezes com base em desinformação – em um mundo cada vez mais polarizado.

No entanto, como percebi alguns anos depois, enquanto trabalhava para o CICV em Myanmar e, em seguida, realizava um estudo interno de dois anos sobre a prática da neutralidade do CICV no Sudão e no Afeganistão, eu não estava certa a respeito dos outros pontos.[1] Percebi que não havia entendido direito a função da neutralidade humanitária, embora ela esteja enunciada claramente na redação deste princípio. O CICV não toma parte em hostilidades nem em controvérsias por uma razão: “conservar a confiança de todos.” Não se trata de uma posição moral, é uma postura operacional que visa facilitar o acesso a pessoas que estão em perigo em ambos os lados de uma linha de frente. Ao ser visto como imparcial em relação aos adversários, o CICV pode conquistar a confiança e a aceitação deles para que permitam que a organização opere de forma eficaz e segura no território que controlam. Por sempre considerar como palavras e ações podem influenciar as percepções de neutralidade, o CICV tenta evitar dar aos beligerantes um pretexto para recusar, impedir ou dificultar seu trabalho. Nunca é fácil. Os obstáculos são frequentes. No entanto, abandonar a neutralidade seria abrir mão da possibilidade de realizar alguns atos de humanidade realmente notáveis em meio às atrocidades da guerra. Trabalhadores humanitários não podem deter a guerra, só líderes políticos podem fazer isso. Mas nós podemos prevenir e atenuar algumas das consequências mais terríveis da guerra e, para isso, precisamos da confiança e do respeito de todas as partes.

Portanto, não: adotar uma postura neutra não confere uma equivalência moral a perpetradores e suas vítimas. Na verdade, esta postura abre caminhos para ajudar as vítimas, como aconteceu durante o genocídio em Ruanda. Naquela época, as equipes do CICV e de MSF trabalharam juntas em um hospital improvisado em Kigali, tentando salvar os feridos. Todos os dias, o chefe da equipe do CICV, Philippe Gaillard, saía de ambulância para ver se conseguia salvar alguém que ainda estivesse respirando, mas tinha que atravessar barricadas comandadas por milícias assassinas para voltar ao hospital. Em cada posto de controle, Philippe saía do veículo e tentava convencer os assassinos a deixá-lo passar. Às vezes, ele conseguia. Pelo bem daqueles dentro da ambulância, ele guardava para si o horror e a repulsa que sentia e falava educadamente com os assassinos. Alguns críticos imaginam que basta o mandato de ajudar vítimas de guerra para que isso aconteça automaticamente. Longe disso. As autoridades que controlam o território precisam concordar com cada tentativa de resgate das vítimas de guerra. Os trabalhadores humanitários têm que ser persuasivos, tenazes, corajosos e hábeis para lidar com quem estiver “no comando”.

Permanecer neutro é difícil, talvez mais difícil do que tomar partido. E a própria possibilidade de ser aceito como neutro foi posta em causa, particularmente depois dos ataques de 11 de setembro nos Estados Unidos e da “guerra contra o terrorismo” que veio depois. O decreto dos EUA de que “ou você está conosco ou está com os terroristas” teve um forte impacto para nossas equipes no terreno que tentavam ajudar a população afegã de ambos os lados da linha da frente e visitar pessoas detidas por forças da coalizão e do governo afegão por suspeita de envolvimento com o Talibã para garantir que fossem tratadas de forma humanitária. As consequências da negação de um espaço neutro ficaram mais evidentes quando um engenheiro hidráulico do CICV foi morto a tiros em março de 2003 e tomaram outra dimensão com os dois ataques ao CICV em Bagdá alguns meses depois. No entanto, depois de muita reflexão, o CICV não se curvou às críticas nem abandonou seus empenhos para estabelecer um vínculo neutro com todos os lados. Perseverou em demonstrar sua preocupação humanitária com todos aqueles que estão envolvidos em conflitos armados e, se não conquistou o respeito, pelo menos conseguiu a aceitação, ainda que a contragosto, de que é útil contar com um intermediário neutro na guerra.

Todos os lados em um conflito armado se beneficiam da postura neutra do CICV. Ela possibilita cruzar linhas de frente para prestar assistência humanitária que salva vidas. Possibilita visitar pessoas detidas por ambas as partes para registrá-las e dar notícias a seus entes queridos. Permite que o CICV recupere e devolva os restos mortais das pessoas falecidas para que seus familiares possam fazer um enterro digno. Permite desempenhar um papel na libertação ou na troca de prisioneiros ou reféns e abre espaço para discutir o respeito às leis e normas internacionais sobre a forma como as guerras são travadas. Ao contrário do que eu acreditava anteriormente, a neutralidade não impõe silêncio ao CICV, ela cria um espaço para discutir com os responsáveis diretos pelas violações do DIH. O CICV faz isso a portas fechadas, em discussões bilaterais e confidenciais. As alegações são apresentadas e busca-se a prestação de contas: as ações não precisam ser publicadas no Twitter para que realmente ocorram. E a discrição pública às vezes é exigida pelas próprias partes beligerantes, que talvez não queiram que se saiba que elas concordaram em respeitar a lei. Nossa confidencialidade não significa complacência e não é incondicional. Mas priorizamos nos encontrar frente a frente com aqueles que dão as ordens e responsabilizá-los diretamente. O CICV usa as comunicações públicas para apoiar seu trabalho bilateral, aumentar a conscientização a respeito do DIH e explicar nossos princípios. E, por vezes, denunciamos publicamente as partes por sua conduta em tempos de guerra, mas apenas depois de esgotar todas as vias de persuasão e quando é do interesse das vítimas fazê-lo.

Os trabalhadores humanitários enfrentam uma série de dilemas ao tentar aliviar o sofrimento das pessoas envolvidas em conflitos armados e precisam fazer escolhas difíceis ao equilibrar os potenciais benefícios e danos da ajuda. Adotar uma postura neutra não resolve nenhum desses dilemas, mas serve como um guia lógico e coerente para tudo o que o CICV faz e diz. A coerência é vital para conquistar confiança – quem poderia confiar numa organização que muda de posição à mercê dos ventos da opinião pública? A neutralidade não é o oposto da “solidariedade”, é um modo de concretizar esse nobre sentimento. MSF percebeu isso há 20 anos e eu estava no lado que perdeu o debate: a neutralidade continua inscrita na carta de princípios de MSF.

[1] A parte do estudo sobre o Afeganistão está disponível em Fiona Terry (2001), ‘The ICRC in Afghanistan: Reasserting the Neutrality of Humanitarian Action’, International Review of the Red Cross, 93 (881): 173-188.

Veja também

Compartilhe este artigo

Comentários

Não há comentários no momento.

Deixe um comentário.