Nos últimos anos, enquanto a atenção se voltava para enfrentar o impacto da pandemia de Covid-19 na saúde pública, na economia e na sociedade como um todo, as consequências humanitárias do conflito e da violência na Colômbia pioraram. Segundo os números, os efeitos do conflito armado e da violência foram maiores em 2021 do que em qualquer outro momento nos últimos cinco anos.
No episódio desta semana de Humanity in War, a apresentadora de podcast Elizabeth Rushing conversou com Mariana Chacon Lozano, assessora jurídica do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) em Bogotá, para discutir o contexto humanitário, o Direito Internacional Humanitário (DIH) e os desafios no âmbito das políticas, assim como os avanços realizados no país.
Já se passaram seis anos desde que o governo da Colômbia e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia — um grupo armado anteriormente conhecido como FARC-EP e agora conhecido como Partido Político Comunes — assinaram o seu famoso acordo de paz, que incluía questões humanitárias como a proteção de crianças, busca de desaparecidos e desminagem, assim como obrigações relativas ao DIH em um cenário pós-acordo. Este acordo de paz se traduziu em um contexto pós-conflito para a Colômbia? Qual é a situação de violência que você vê no país hoje?
Lamentavelmente, não se traduziu em pós-conflito. Embora o acordo de paz tenha conseguido encerrar o conflito entre o agora partido Comunes e o governo, vários outros grupos armados não estatais ainda operavam no país e correram para tomar os territórios deixados pelas FARC-EP nesse momento.
Ao mesmo tempo, havia remanescentes das FARC-EP que nunca se desmobilizaram. Nunca aderiram ao processo de paz. E desde 2017, eles pouco a pouco se reagruparam, reestruturaram e agora se tornaram uma organização nacional de novo. Portanto, enquanto ainda vemos que, digamos, 30% do acordo de paz entre as FARC-EP e o governo foi implementado, há situações paralelas com violência que se tornaram ou foram conflitos armados não internacionais (CANI).
Neste momento, o CICV classificou seis CANI na Colômbia. Três opõem o governo da Colômbia a grupos armados e os outros três opõem grupos armados não estatais a outros grupos armados não estatais.
Em relação ao primeiro tipo de conflito, temos o governo da Colômbia contra as ex-FARC atualmente não aderidas ao acordo de paz, aquelas a que me referi que nunca se desmobilizaram. Temos um segundo conflito entre o governo e as Autodefensas Gaitanistas de Colombia (AGC). O terceiro é o Estado contra o Exército de Libertação Nacional (ELN). Quanto aos conflitos entre grupos armados não estatais, o ELN combate as AGC e as ex-FARC-EP , que nunca se desmobilizaram em um CANI, também se enquadram em dois conflitos armados diferentes contra outros grupos pós-FARC.
Assim, embora a violência contra o governo tenha diminuído em decorrência do cessar-fogo, os combates entre os grupos não diminuíram. E como você disse, isso significou que, infelizmente, as consequências humanitárias aumentaram no país nos últimos anos.
Como em qualquer outro contexto de violência ou conflito, muitas vezes é a população civil que fica encurralada entre esses confrontos. Você pode nos dizer quais são as principais preocupações humanitárias criadas pelos confrontos entre esses atores armados?
Nos últimos cinco anos, por exemplo, vimos que o deslocamento aumentou 360%, de 14 mil pessoas para 52 mil pessoas. O número de vítimas de artefatos explosivos também aumentou em 800%. Em 2017, foram 57 vítimas e, em 2021, foram 449. Também vimos um aumento de 500% nos ataques contra a prestação de serviços de saúde: houve 101 incidentes em 2017 em comparação com 553 em 2021.
Antes de 2016 na Colômbia, tínhamos talvez três grupos armados não estatais com hierarquia e organização militar claras e um comando central. Mas depois de 2016, a realidade tem sido muito mais fluida e as estruturas têm sido difíceis de acompanhar, como você diz, para efeitos de classificação. Portanto, novamente, embora qualquer acordo de paz e qualquer situação que diminua as consequências humanitárias para a população sejam bem-vindos pelo CICV, é de extrema importância manter a classificação e a visão técnica desses eventos no objetivo de campo.
Falemos sobre alguns dos trabalhs que estão sendo realizados, tanto no nível nacional como no da ajuda humanitária internacional, para combater os efeitos desta violência. No ano passado, a Organização das Nações Unidas (ONU) enalteceu a Colômbia por ter feito uma conquista sem precedentes na justiça de transição, e grande parte do trabalho de qualquer delegação do CICV é a disseminação do DIH. Você poderia descrever como o departamento jurídico do CICV está lidando com as consequências humanitárias que você acabou de descrever e também que avanços ocorreram na Colômbia para esse fim?
Sim, com prazer. E ao seu comentário, acho importante dizer que o departamento jurídico aqui trabalha em estreita colaboração com o terreno para garantir que tenhamos uma leitura clara não apenas da dinâmica do conflito, mas também dessas consequências humanitárias para tentar encontrar uma resposta, um resposta sistêmica para isso e evitar que aconteçam no futuro.
Por exemplo, o departamento jurídico trabalhou nos últimos três anos em um projeto com o Ombuds no qual diagnosticamos quais são os obstáculos legais enfrentados pelos migrantes afetados por um CANI, porque são uma população particularmente vulnerável dentro da população afetada por CANI, e trabalhamos com eles na emissão de diretrizes e regulamentos que atendem de maneira mais adequada às suas necessidades.
Muitas vezes estes migrantes estão em situação de irregularidade e não recorrem às autoridades para denunciar problemas ou não têm informações suficientes por medo de ficarem em evidência por não terem a documentação adequada. Portanto, estamos trabalhando com as autoridades para tentar encontrar uma solução para esses problemas com base na nossa experiência de terreno.
Outra coisa que estamos fazendo é o trabalho com o Ministério da Saúde para garantir que o respeito pela prestação de cuidados de saúde aos profissionais de saúde seja bem implementado e que eles não sejam processados por prestarem serviços médicos a grupos armados não estatais ou às forças armadas.
Também estamos trabalhando na atualização do manual da missão médica, como é chamada na Colômbia, para que os marcos legais aplicáveis sejam mais claros. Ademais, trabalhamos em uma diretriz para prestar uma melhor assistência médica às vítimas de contaminação por armas, no caso artefatos explosivos, porque na Colômbia membros de grupos armados não estatais não são considerados vítimas legalmente de acordo com o sistema. Assim, não podem ter acesso a determinadas prestações de serviços do Estado. No entanto, com essa diretriz, o que conseguimos, e acho que foi uma conquista importante, foi separar o conceito técnico de vítima na Colômbia da prestação de serviços de saúde imediatos a esses membros, caso sejam afetados, por exemplo, por uma mina.
Gostaria de mencionar que, em relação às pessoas desaparecidas – uma das consequências que têm aumentado nos últimos dois anos –, estamos trabalhando com a unidade especial de busca de pessoas desaparecidas, que foi criada a partir do acordo de paz, para tentar dar conteúdo ao ângulo humanitário com o qual realizam as buscas e garantir que o sistema de busca de pessoas desaparecidas na Colômbia esteja funcionando como tal, como um sistema. Porque existem muitas instituições na Colômbia que promovem a busca de pessoas desaparecidas, mas não são necessariamente sempre coordenadas.
Finalmente, porque você mencionou a justiça de transição, também trabalhamos com uma jurisdição especial para a paz. Trata-se de uma jurisdição que foi criada com base no acordo de paz para processar, se for o caso, integrantes das FARC-EP e integrantes das Forças Armadas do Estado no âmbito do conflito. Entre outras coisas, eles têm que decidir a quem conceder anistia e quem cometeu crimes de guerra e, portanto, não pode receber anistia. No conceito de crimes de guerra, há muitas áreas cinzentas e eles têm a missão de conceder a mais ampla anistia possível, de acordo com o Protocolo Adicional II. Portanto, estamos trabalhando com eles também para ajustar certos conceitos do DIH, como a tomada de reféns.
Aprofundemos um pouco mais nesse ponto, na verdade. Como guardiães nomeados do DIH, uma pergunta que nos fazem regularmente no CICV é o que acontece quando o DIH é violado. Você pode nos dizer, com um Poder Judiciário tão forte, como o DIH é aplicado na Colômbia?
Bem, essa é uma questão interessante e complexa. Se nos concentrarmos nos mecanismos de justiça de transição, como a jurisdição especial para a paz, acho que a Colômbia tem uma experiência única, pois o chefe deste tribunal tem diferentes fontes de direito internacional e direito nacional que podem ser aplicadas diretamente. Não posso dizer como vai ser o resultado desses processos porque ainda não terminaram um – estão em processo de análise e em processo de reconhecimento e audiência com as vítimas.
Portanto, é um processo muito interessante que tem um lado legal, um lado político, mas também um lado muito humanitário, porque eles estão promovendo o reconhecimento dos perpetradores, a participação das vítimas e o conceito de autossanções, sanções restaurativas que permitiriam aos perpetradores não necessariamente cumprir pena na prisão, mas realizar ações que repararão e retribuirão às comunidades que afetaram.
Para mim, essa é uma questão fascinante na Colômbia que coexiste com a justiça “ordinária”. A Colômbia tem um capítulo que implementou violações graves do DIH no seu código penal e conduz processos judiciais. Mas, ao mesmo tempo, acho que o foco principal continua sendo esses mecanismos de justiça de transição.
O DIH, ironicamente, é muito conhecido na Colômbia, por ser tão publicamente usado e mencionado nos meios de comunicação. Nunca estive em um contexto em que o DIH seja tão conhecido – está na ponta da língua, está sempre presente. Infelizmente, nem sempre é bem compreendido técnica e profundamente. Portanto, parte do nosso trabalho no departamento jurídico é divulgá-lo de forma técnica e detalhada para que não seja instrumentalizado ou mal interpretado em um contexto como o da Colômbia, no qual o paradigma do DIH e o paradigma dos direitos humanos coexistem o tempo todo.
A última pergunta seria sobre as mais recentes eleições – em agosto, quando a Colômbia iniciou um novo capítulo político com uma mudança de governo. Neste marco de uma iniciativa agora de “paz total”, como é que a comunidade humanitária está adaptando os planos que traçou a esta nova administração?
Tem sido um processo muito interessante e desafiador. A iniciativa de paz total é uma tarefa enorme que o governo estabeleceu para si. O CICV acolhe novamente qualquer iniciativa que signifique que as consequências humanitárias diminuiriam para a população.
O governo já está se sentando com o ELN, um dos grupos não estatais que mencionei. Pela necessidade de avançar e ter uma visão clara das consequências humanitárias, mas ao mesmo tempo trazer a paz para casa de forma a fazer com que a população sinta que a paz já está próxima, temos a sensação de que as decisões políticas que estão sendo tomadas no âmbito das negociações incluem questões humanitárias. No entanto, não necessariamento estão mantendo os limites entre elas. Entendemos que o governo precisa de todas as ferramentas necessárias para trabalhar pela paz, mas, ao mesmo tempo, ainda existem consequências humanitárias em diferentes partes do país, algumas mais do que outras.
A comunidade humanitária reconhece o desafio que o governo tem e continuará conduzindo a sua ação humanitária de acordo com os seus padrões humanitários, tendo acesso humanitário às comunidades e, sim, promovendo um ambiente que possa indiretamente ajudar nas conversas de paz, mas não necessariamente sendo o implementadores da paz.
Acho que isso é verdade, haja negociações de paz ou não. Nesse sentido, o DIH é uma ferramenta muito poderosa e útil para lembrar às partes que, mesmo durante as negociações, há um conjunto mínimo de obrigações que elas devem cumprir e que podem ser aplicadas para continuar protegendo as pessoas após o término de um conflito armado, em situação de pós-conflito. Essas consequências humanitárias, é claro, precisarão ser acompanhadas mesmo após a concretização de qualquer acordo e também podem informar as partes sobre que obrigações devem ser levadas em consideração ao se chegar a um acordo sobre essas questões.
Portanto, a mensagem é que o espaço humanitário continuará funcionando e precisa continuar funcionando com base nos seus padrões e acesso. Sim, há coisas que estão interligadas e inter-relacionadas — o mundo humanitário pode ajudar a criar um ambiente propício para negociações — mas não deve ser tomado como fator ou influência direta ou sobre isso.
Vou dar um exemplo só para finalizar. Quando o CICV estava envolvido nas negociações de paz entre as FARC-EP e o governo da Colômbia, éramos facilitadores e mediadores logísticos, mas também oferecíamos assessoria jurídica e humanitária em questões como proteção de crianças, contaminação por armas e pessoas desaparecidas. Podemos fazer isso agora também, mantendo o nosso mandato e trabalhando de acordo com os nossos princípios.
Veja também
- Nils Melzer e Elizabeth Rushing, Neutralidade humanitária nos conflitos armados contemporâneos: uma conversa com Nils Melzer, 26 de janeiro de 2023
- Eirini Giorgou, Preventing and eradicating the deadly legacy of explosive remnants of war, 23 de fevereiro de 2023
- Charles Deutscher e Chandni Dhingra, Present and engaged: how the ICRC responds to armed conflict and violence in cities, 19 de Janeiro de 2023
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