Como os atores humanitários podem responder melhor ao impacto devastador da violência e da guerra urbana? Em termos humanitários, há mais em jogo nas cidades devido ao impacto cumulativo em um grande número de pessoas e nos sistemas interconectados dos quais elas dependem. Como as dificuldades são maiores, é mais importante colocar em prática as principais características de uma ação humanitária eficaz.
Neste artigo, os assessores de política do CICV Charles Deutscher e Chandni Dhingra apresentam um novo documento que faz um balanço da experiência do CICV em responder ao impacto da guerra e da violência nas cidades.
De vez em quando, os militares suíços fazem exercícios perto de Genebra – de onde estamos escrevendo – e posicionam artilharia no lago Léman, onde as pessoas costumam nadar ou fazer piquenique. Contemplar as consequências para a população desta cidade – ou da sua – de que essa artilharia realmente precise ser usada dá o que pensar: se pessoas nadando ou fazendo um piquenique fossem feridas ou mortas; se casas, sistemas de serviços básicos e monumentos culturais fossem destruídos; se um cerco impedisse a entrada de alimentos e as pessoas não pudessem sair; se as ruas estivessem contaminadas com explosivos não detonados.
O que é hipotético para alguns é uma dura realidade para muitos: mais de 50 milhões de pessoas são afetadas pelo conflito armado urbano – o conflito armado entre Rússia e Ucrânia é mais uma manifestação disso – e cerca de 1,5 bilhão de pessoas vivem em ambientes frágeis, como as favelas do Rio de Janeiro, onde a violência armada crônica assola a vida cotidiana. É improvável que isso mude em breve, e o mundo continua se urbanizando.
A responsabilidade de reduzir o sofrimento humano em meio à guerra e à violência é principalmente dos Estados e de outras partes que têm deveres, conforme suas obrigações impostas pelo Direito Internacional Humanitário (DIH) e outras normas pertinentes. No entanto, os atores humanitários podem e devem ser mais eficazes. Por isso, temos feito um balanço de nossas experiências e refletido sobre por que as cidades, como ambientes operacionais, criam consequências humanitárias específicas e como devemos adaptar nossas respostas, muitas vezes com outros componentes do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho.
Conversamos com funcionários do CICV envolvidos em respostas urbanas em seis países – Brasil, Colômbia, Honduras, Líbia, Filipinas e Ucrânia[i] – sobre suas experiências, os desafios que enfrentaram e o que faz com que os ambientes urbanos sejam diferentes. Com base nesses intercâmbios, em uma década de publicações do CICV sobre diversos aspectos da resposta urbana, na literatura externa e em iniciativas de práticas urbanas recomendadas, este texto compartilha um pouco do que aprendemos. Nossa recente publicação, Present and engaged: How the ICRC responds to armed conflict and violence in cities (“Presente e ativo: como o CICV responde a conflitos armados e violência nas cidades”), entra em mais detalhes.[ii]
O que aprendemos com as respostas do CICV às consequências humanitárias da violência e da guerra urbana
Em termos gerais, descobrimos que não há muita diferença entre o que é importante para a ação humanitária em cidades afetadas por conflitos armados e violência ou em outros ambientes. No entanto, nossas entrevistas mostram que pode ser difícil colocar em prática as principais características – muitas vezes, o CICV não conseguiu. Entre os motivos há fatores externos decorrentes das especificidades das cidades, como o grande número de pessoas afetadas pela violência e pela guerra urbana, e a escala e o escopo de seu impacto cumulativo. Também há fatores internos do setor humanitário, como formas arraigadas de trabalhar com a experiência setorial e da resposta a emergências.
Como os riscos humanitários são maiores nas cidades, é de extrema importância colocar em prática as seguintes lições que se reforçam mutuamente.
1. As respostas humanitárias devem levar em conta que as cidades têm necessidades humanitárias próprias
As pessoas moram em cidades para ter acesso às diversas oportunidades educacionais, sociais, de emprego e outras que a vida urbana oferece. O CICV entende uma cidade como um conjunto complexo de subsistemas que representam diferentes áreas interconectadas da vida urbana: comunidade, economia, governança e serviços. As pessoas estão no centro desses subsistemas e formam parte do tecido de uma cidade por meio de suas inúmeras interações e interdependências. Em troca dessas oportunidades, no entanto, as pessoas abrem mão de um grau significativo de autossuficiência em comparação com quem mora em zonas rurais, pois sua sobrevivência depende de bens e serviços fornecidos pelo Estado ou por terceiros, como água, saneamento, eletricidade e saúde. Esse “paradoxo urbano” torna as pessoas vulneráveis a interrupções do sistema. Somado à densidade populacional, ao tamanho e à complexa dinâmica social e de governança, isso distingue as cidades de outros cenários de guerra e violência.
Embora tenham consequências humanitárias diferentes, tanto a guerra urbana quanto a violência urbana afetam as precondições fundamentais para participar da vida urbana: a capacidade de ganhar a vida (meios de subsistência), de ter acesso a bens e serviços básicos (bens e serviços) e de circular livremente para esses e outros fins (mobilidade).
O que isso significa para as respostas humanitárias nas cidades?
2. As respostas humanitárias devem dar apoio a indivíduos e aos sistemas urbanos dos quais dependem
Como a população depende dos subsistemas urbanos para suprir suas necessidades básicas, as respostas humanitárias devem combinar a melhor compreensão humana possível das experiências pessoais com a melhor compreensão técnica possível dos subsistemas urbanos para apoiar a resiliência tanto das pessoas quanto dos sistemas.
Entre 2014 e 2021, por exemplo, o CICV usou seu conhecimento técnico sobre infraestrutura hídrica e suas relações com prestadores de serviços para mapear importantes estações de bombeamento e filtragem nos 400 km da linha de frente ao redor de Donetsk e Luhansk, na Ucrânia. Com isso, lembramos às partes beligerantes que, de acordo com o DIH, elas têm o dever de proteger essas infraestruturas, que poderiam provocar graves consequências humanitárias se fossem danificadas e deixassem centenas de milhares de pessoas sem água.
Dar apoio para que sistemas cheguem a um grande número de pessoas não nega a necessidade de se adaptar às necessidades e vulnerabilidades específicas de indivíduos. Aqui, o modo como a ação humanitária é realizada importa: “não é apenas distribuir”, disse um membro da equipe do CICV em Donetsk, “é também ouvir as histórias e necessidades das pessoas, para que elas saibam que não foram esquecidas”. A segurança econômica merece atenção especial, pois o acesso a uma renda sustentável é fundamental para suprir as necessidades básicas nas cidades e priorizar investimentos de longo prazo em áreas como educação e moradia. A assistência em dinheiro – que raramente é um recurso isolado e nunca é ilimitado – pode ser um meio fundamental de apoio, porque permite que as pessoas decidam como suprir suas necessidades específicas e estimula a economia.
3. As respostas humanitárias devem combinar abordagens de curto e longo prazo
Embora o CICV esteja há mais de 40 anos em seus dez maiores contextos operacionais, a maioria com dimensões urbanas, encontrar um equilíbrio entre atender às necessidades de curto e longo prazo continua sendo um desafio. Atividades de longo prazo que ajudariam a fortalecer a resiliência de pessoas e sistemas podem ser adiadas, particularmente quando as emergências são recorrentes em um país.
O CICV formulou uma perspectiva de longo prazo, sem perder a capacidade de responder a emergências, para apoiar o abastecimento de água durante e depois da Batalha de Marawi, nas Filipinas, em 2017. Nossa resposta de emergência foi realizada de maneiras “tradicionais”, por exemplo, transportando água para pessoas deslocadas para abrigos temporários. Como as hostilidades danificaram seriamente a principal estação de bombeamento de água, também encomendamos um estudo detalhado – que as autoridades locais não tinham capacidade de realizar – para avaliar a condição física e a capacidade da infraestrutura. Isso serviu de base para o apoio de longo prazo, que incluiu a reforma dos escritórios para garantir condições de trabalho decentes e possibilitar que o provedor de serviços forneça água a outras pessoas. “Levou um tempo mudar a lógica operacional [da resposta de emergência] e obter os recursos necessários”, lembrou um engenheiro do CICV, “mas o plano diretor de Marawi foi um divisor de águas em termos de mentalidade e colaboração de longo prazo do CICV [com autoridades locais e atores de desenvolvimento] para fortalecer a resiliência do sistema”.
4. As respostas humanitárias devem ser multidisciplinares
As respostas humanitárias nas cidades devem ser multidisciplinares, idealmente desde o início, porque as pessoas não compartimentam suas experiências por setor. Embora isso se aplique à ação humanitária em geral, as consequências de não adotar uma abordagem multidisciplinar provavelmente serão muito mais graves em uma cidade, devido ao número de pessoas concentradas, à falta de alternativas aos bens e serviços fornecidos pelo Estado ou por terceiros e à interconectividade dos subsistemas urbanos. Além da mera coordenação, isso significa incorporar conhecimentos específicos do setor a uma resposta holística que enfrente as verdadeiras causas dos problemas humanitários da população.
Por exemplo, o conflito nos arredores de Trípoli, na Líbia, deslocou mais de 100 mil famílias em 2019 e 2020. Quando as famílias começaram a voltar para casa, as equipes do CICV realizaram uma avaliação multidisciplinar como parte de um programa com o objetivo de restaurar certa normalidade e criar condições propícias para um retorno duradouro. A avaliação foi multidisciplinar tanto na composição das equipes quanto no questionário utilizado para orientar as conversas com as famílias sobre suas necessidades e aspirações. No final, considerou-se que o apoio em espécie – alimentos, utensílios domésticos e serviços (por exemplo, para reconectar famílias separadas) – e a assistência financeira eram uma combinação eficaz para ajudar as pessoas a suprir suas necessidades e reavivar os mercados locais. Coordenadas com autoridades locais e grupos de trabalho comunitários, essas atividades beneficiaram quase um milhão de pessoas na Líbia em 2020. É importante ressaltar que, durante esse período, a liderança de nossa delegação em Trípoli conectava ativamente as equipes das várias disciplinas para normalizar essas abordagens.
5. As respostas humanitárias devem mobilizar e capacitar outros atores
Nas cidades onde a escala e o escopo das necessidades excedem seus papéis e capacidades, os atores humanitários podem contribuir para criar um impacto sustentável atuando como facilitadores e trabalhando por meio de instituições locais, autoridades e setor privado, talvez até mais do que através da ação direta.
Em oito cidades brasileiras, por exemplo, o CICV trabalha com as autoridades locais responsáveis por saúde, educação e serviços sociais para implementar uma metodologia específica de gestão de riscos, Acesso Mais Seguro para Serviços Públicos Essenciais, que lhes fornece maneiras práticas de continuar fazendo seu trabalho, apesar dos altos níveis de violência urbana. Isso resultou em uma queda de 40% no fechamento de unidades de serviços no Rio de Janeiro apenas em 2017 e 2018, e mais de quatro milhões de pessoas se beneficiaram do aumento do acesso a cuidados de saúde e educação desde 2017.
Em outros casos, o CICV agiu como um intermediário neutro para facilitar tanto a entrada de uma empresa de energia em áreas que não podia alcançar, devido à presença de grupos armados, para redesenhar a iluminação pública e possibilitar que as pessoas permanecessem no trabalho e na escola depois do pôr do sol (Buenaventura, Colômbia) quanto o pagamento de contas de água por pessoas que vivem em áreas não controladas pelo governo ao prestador de serviços que fica em uma área controlada pelo governo (em torno de Luhansk, Ucrânia).
Inicialmente, um dos principais desafios nesses contextos foi identificar as autoridades certas com quem deveríamos trabalhar. Como disse um membro da equipe do CICV em Fortaleza, “[numa] teia de aranha política e burocrática, nem sempre é fácil saber onde estão as lacunas ou quem é responsável por elas e quem pode resolvê-las”. Neste aspecto, a equipe local do CICV – com seu profundo conhecimento sobre o lugar – é fundamental para estabelecer relações de confiança muito antes de uma crise.
Mais do que tijolos e cimento: trabalhar com a cidade, não apenas na cidade
A publicação Present and engaged se destina principalmente a atores humanitários, mas não é um guia prescritivo de como agir. Ela fornece uma estrutura conceitual e recomendações que continuarão orientando a ação do CICV, inclusive como parte dos esforços com o Movimento mais amplo para implementar duas resoluções sobre guerra nas cidades e resiliência urbana que foram adotadas em 2022.[iii] Esperamos que outros atores humanitários considerem essas recomendações em suas próprias ações.
Se, coletivamente, desenvolvermos uma compreensão bem fundamentada das necessidades dos indivíduos e da dependência dos subsistemas urbanos, trabalharmos em silos técnicos e fizermos parcerias significativas com autoridades locais, comunidades e outras partes interessadas, atenderemos melhor às necessidades básicas da população afetada por conflitos ou outros tipos de violência e, de quebra, ajudaremos a construir cidades resilientes. Afinal, Shakespeare estava certo: “Que é a cidade, se não for o povo?”[iv]
[i] Concluímos a realização de entrevistas para esta publicação em 2021.
[ii] Present and Engaged – How the ICRC Responds to Armed Conflict and Violence in Cities
[iii] Consultar as resoluções 6 e 11 Documents – 2022 Council of Delegates – Statutory Meetings (rcrcconference.org).
[iv] Shakespeare, William, Coriolano, Ato III, Cena 1.
Comentários