O termo “escudos humanos” descreve um método de guerra proibido pelo Direito Internacional Humanitário (DIH), durante o qual a presença de civis ou os movimentos da população civil, seja de forma voluntária ou involuntária, são usados para colocar objetivos militares ao abrigo de ataques, ou para encobrir, favorecer ou dificultar operações militares. Os escudos humanos estão protegidos contra ataques a menos participem diretamente das hostilidades e durante o tempo em que o façam.
Embora a lei seja clara, a realidade pode ser distorcida pelo uso discursivo de escudos humanos. Neste fascículo da nossa série especial sobre guerra urbana, Neve Gordon e Nicola Perugini – autores de ‘Human Shields: A History of People in the Line of Fire’ – se baseiam na publicação de Zoi Lafazani, e debatem sobre o que eles chamam de “escudos por proximidade”, por meio dos quais os humanos são concebidos como escudos simplesmente pela sua proximidade com os beligerantes.
Hoje faz dois anos que a sua cidade foi capturada por um grupo armado não estatal. Durante este tempo, quase metade da população fugiu devido às políticas extremistas do grupo e suas práticas de governo implacáveis. De acordo com as notícias, uma coalizão internacional apoiará seu governo para atacar o grupo armado não governamental e recuperar o controle da cidade.
Alguns dias antes do ataque, começam a circular acusações de que o grupo armado está usando escudos humanos. Em questão de dias, o número estimado de civis utilizados como escudos humanos aumenta, inicialmente são relatados dezenas de milhares de casos, mas depois o número muda para cem mil.
Quando os combates cessam, grupos de direitos humanos proeminentes, as Nações Unidas e vários governos culpam o grupo armado não governamental por inverter totalmente o imperativo legal de proteger os civis, explorando ilegalmente a imunidade civil de ataques em uma tentativa de proteger suas próprias forças. De acordo com esses grupos de direitos, os militantes impediram que os civis evacuassem para um local seguro, os prenderam em suas casas e mataram sumariamente as pessoas que tentaram escapar. Mas, quando a poeira baixa, embora a evidência do uso de escudos humanos seja avassaladora, a sugestão de que dezenas de milhares de pessoas foram usadas como escudos por algumas centenas de militantes parece um exagero descarado e perigoso.
Proximidade com quê?
A maioria das pessoas rotuladas como escudos neste cenário ficcional – bem como em muitas situações da vida real – foram classificadas desta maneira devido à sua proximidade com os combates. Uma busca feita nos principais jornais ingleses sobre a frase “escudos humanos”, de novembro de 2015 a outubro de 2016, revela que os escudos “por proximidade” se tornaram, de longe, o tipo de escudo mais proeminente no discurso contemporâneo sobre a guerra.[i] Dentre os 1.221 artigos em que são mencionados os escudos humanos durante esse período, em 65 são descritos escudos voluntários, em 272 são detalhados escudos involuntários e em 731 são retratados civis que foram lançados como escudos humanos porque viviam no meio do combate, enquanto em outros 153 foi usada a frase como uma metáfora.
O número atual de pessoas que são descritas como escudos humanos nesses artigos é notável: há referências a 7 escudos voluntários, 9.456 escudos involuntários e 3.354.800 escudos “por proximidade”. A percentagem de escudos humanos voluntários é insignificante e os escudos involuntários correspondem apenas a 0,2%, enquanto os escudos “por proximidade” compreendem mais de 99% dos civis caracterizados como escudos.
Por que, poderíamos nos perguntar, tantas pessoas estão sendo rotuladas como escudos humanos devido à sua proximidade com os combates? E o que torna o uso de escudos “por proximidade” suscetível a manobras políticas e legais que podem levar a tolerar crimes de guerra?
A localização da agência
No nosso livro, Human Shields: A History of People in the Line of Fire, fazemos uma distinção entre três tipos principais de escudos humanos – voluntário, involuntário e “por proximidade” – que têm a ver, por um lado, com a localização da agência e, por outro, com a relação do uso de escudos com a violência.
De acordo com nossas definições de trabalho, os escudos voluntários são pessoas que visivelmente impõem sua própria agência, enquanto os escudos involuntários correspondem àquelas pessoas que ostensivamente carecem de agência e são obrigadas por uma parte beligerante ativa a ajudar conseguir seus objetivos. A agência, em outras palavras, está localizada dentro do escudo voluntário, enquanto atua sobre o escudo involuntário. Isso é tão importante quanto que, os escudos voluntários usam seu corpo de uma forma não violenta numa tentativa de evitar ou parar a violência, enquanto os escudos involuntários fazem parte integrante da economia da violência existente.
Os escudos humanos “por proximidade” são, em muitos aspectos, deferentes dos seus equivalentes voluntários ou involuntários. Ao passo que os escudos involuntários são obrigados pelos beligerantes a protegerem alvos militares e os escudos voluntários escolhem essa ação, os escudos humanos “por proximidade” se tornam escudos pelo simples fato de estarem “muito perto” de um alvo legítimo. Dito em outras palavras, os escudos “por proximidade” se tornam escudos humanos sem fazerem nem serem forçados a fazer nada. Isto é, em parte, o que os distingue de outros escudos e ajuda a explicar por que esse tipo de escudo é cada vez mais invocado para legitimar a violência desumana.
Fundamentalmente, no caso de escudos “por proximidade”, argumentamos que a agência está ausente e, devido a esta ausência, os escudos “por proximidade” introduzem uma dimensão numérica, uma espacial e uma temporal que não existem nos outros dois tipos de uso de escudos. Isso torna o uso dos escudos “por proximidade” mais propício à aplicação de violência letal em conflitos armados contemporâneos, em particular nos contextos predominantemente urbanos da guerra contra o terror.
Numericamente, populações urbanas inteiras podem ser concebidas como escudos “por proximidade”, porque o escudo é produzido por meio de uma declaração e não pela agência dos beligerantes ou dos civis que estão no local. Portanto, por meio do enunciado e da citação contínua da frase “escudos humanos” em comunicados de imprensa ou por porta-vozes (em representação de organizações estatais, militares ou humanitárias), literalmente, milhões de pessoas em toda a Ásia e a África foram concebidas como escudos “por proximidade”.
Espacialmente, o retrato de toda a população civil de uma cidade como escudos “por proximidade” poderia permitir às forças de ataque delimitarem grandes espaços urbanos como alvos, já que, por definição, os escudos humanos protegem um alvo militar legítimo. Enquanto os escudos voluntários e involuntários ocupam um espaço específico entre um beligerante e seu alvo, os escudos “por proximidade” podem estar em qualquer lugar e, muitas vezes, estão em todos os lugares, em um espaço urbano determinado.
Temporalmente, o uso de escudos “por proximidade” pode ir além do uso de escudos voluntários e involuntários, porque esses dois estão restritos ao tempo durante o qual o civil atua ou é forçado a atuar como um escudo. Pelo contrário, como os escudos “por proximidade” se tornam escudos por meio de iteração performativa – especificamente, a acusação de que um grupo armado não governamental está “mobilizando dezenas de milhares de escudos humanos” foi divulgada pela mídia, por figuras políticas proeminentes e por organizações de direitos humanos – dezenas de milhares de civis podem ser caracterizados como escudos durante dias, semanas e, às vezes, meses. Os escudos “por proximidade” podem existir enquanto as áreas urbanas forem atacadas e os combates persistirem.
Fundamentalmente, as dimensões numérica, espacial e temporal que caracterizam o uso de escudos “por proximidade” ajudam a explicar por que se tornaram uma presença constante na guerra contra o terror. Os escudos “por proximidade” podem levar as partes em conflito a descreverem populações civis inteiras dentro das cidades como escudos humanos e, ao fazê-lo, podem alterar os cálculos de proporcionalidade, relaxar os limites de violência permitidos em ambientes urbanos e, ao mesmo tempo, culpar seus inimigos pelos crimes contra civis.
Repensar a acusação de uso de escudos
Na nossa pesquisa, sugerimos que as organizações humanitárias e de direitos humanos têm sido cúmplices deste exercício de estruturamento e que é urgente ter uma conversa franca sobre os escudos humanos e as implicações legais e políticas da acusação do uso de escudos humanos. Tanto no nosso livro quanto em vários artigos acadêmicos, temos demonstrado que os Estados que possuem alta tecnologia consagram recursos significativos à realização de campanhas na mídia e mobilizam competência legal e militar para justificar o uso que eles fazem de violência letal em cidades onde os civis estão presos.[ii] Nós descrevemos como os escudos humanos, e particularmente a acusação do uso de escudos “por proximidade”, estão sendo amplamente usados pelos Estados e seus militares para justificar mortes de civis em conflitos assimétricos, e como isso se tornou uma importante ferramenta no que chamamos de “erosão” dos civis.
Enquanto tentamos desvendar, desmascarar e condenara acusação de uso de escudos “por proximidade”, expondo a forma como têm sido usada pelos Estados para encobrir crimes de guerra contra populações civis, nos deparamos com que organizações humanitárias e de direitos humanos muitas vezes falharam em desafiar ou mesmo questionar essa acusação. Infelizmente, isso ajudou a constituir a acusação de uso de escudos “por proximidade” como senso comum no discurso jurídico e público internacional. Portanto, nós gostaríamos de pedir a estas organizações que repensem a acusação do uso de escudos “por proximidade”, o contexto assimétrico no qual está acontecendo, e como está sendo usada e abusada para explicar e justificar a morte de civis. Gostaríamos de iniciar uma conversa.
Nota do editor – Os pontos de vista expressos neste blog correspondem aos autores e não devem ser interpretados como uma opinião do CICV.
[i] Na busca foram identificados 1.903 artigos que usavam a frase escudos humanos, mas 682 deles eram duplicados. Ao fazer a contagem do número de pessoas usadas como escudos, nós consideramos cada incidente apenas uma vez, mas usamos o maior número fornecido nos artigos para descrever o incidente.
[ii] Neve Gordon e Nicola Perugini, Human Shields. A History of People in the Line of Fire (Berkeley: University of California Press, 2020); Neve Gordon e Nicola Perugini, “The Politics of Human Shielding: On the Resignification of space and the Constitution of Civilians as Shields in Liberal Wars,” Environment and Planning D: Society and Space 34, no. 1 (fevereiro de 2016): 168-187; Nicola Perugini e Neve Gordon, “Distinction and the Ethics of Violence: On the Legal Construction of Liminal Subjects and Spaces,” Antipode 49, no. 5 (November 2017): 1385-1405;
Veja também
- Zoi Lafazani, Human shields under IHL: a path towards excessive legalization, 16 de novembro de 2021
- Daniel Palmieri, War and the city: a history, 29 de abril de 2021
- Laurent Gisel, Pilar Gimeno Sarciada, Ken Hume & Abby Zeith, Urban warfare: an age-old problem in need of new solutions, 27 de abril de 2021
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