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Hospitais sob ataque: desafios legais e práticos para reforçar a proteção

Em meio à devastação dos conflitos armados, os hospitais são como frágeis santuários, sobrecarregados pela demanda e carentes de suprimentos essenciais. Esforçando-se para funcionar sob uma pressão implacável, eles permanecem excepcionalmente vulneráveis e, em vez de receberem proteção, muitas vezes são atingidos no fogo cruzado de ataques táticos e alegações políticas.

Neste episódio da série Vozes Emergentes, Khang Phan e Thao Nguyen, recém-formados pela Universidade Ritsumeikan Asia Pacific, traçam padrões sobre os ataques a hospitais em conflitos contemporâneos. Eles examinam as proteções legais em vigor e os desafios práticos que minam o cumprimento e a aplicação da lei. Ao fazê-lo, ressaltam a necessidade de sistemas de alerta mais eficazes e de uma comunicação mais efetiva entre as partes interessadas para garantir que os hospitais recebam a proteção mais completa possível.

Entre o início de 2023 e o final de 2024, cerca de 1.800 ataques afetaram estabelecimentos de saúde, prejudicando gravemente o seu funcionamento. Os danos e a destruição, sobretudo nos hospitais, privam as pessoas do acesso crítico à assistência médica, colocando milhares de vidas em risco nas zonas de conflito. De acordo com o Direito Internacional Humanitário (DIH), os hospitais devem ter assegurados quatro elementos de proteção especial (ver aqui e aqui). Em primeiro lugar, eles não podem ser atacados em nenhuma circunstância. Em segundo lugar, devem sempre ser respeitados e, em terceiro lugar, protegidos – a menos que sejam usados, além da sua função humanitária, para cometer atos nocivos ao inimigo. Em quarto lugar, se um hospital perder o seu status de proteção específico, uma advertência clara e eficaz deve ser emitida antes da realização de qualquer operação militar em resposta. Além disso, para que a perda da proteção específica justifique um ataque, a prática do ato nocivo ao inimigo deve levar o hospital a preencher os critérios cumulativos que o qualifiquem como um “objetivo militar” (ver também o parágrafo 1847).

Na realidade, o funcionamento dos hospitais é quase sempre prejudicado por operações militares intensas. Danos às infraestruturas críticas ao redor e bloqueios de postos de controle obstruem os serviços de ambulância e interrompem a prestação de serviços básicos, como eletricidade, água e o fornecimento de equipamentos médicos. As ordens de evacuação em massa levam os civis – incluindo pessoas feridas, idosas, com deficiência, crianças e mulheres – a buscarem refúgio em hospitais superlotados, sobrecarregando recursos já escassos. À medida que as condições se deterioram, os profissionais de saúde são forçados a fugir e os civis são obrigados a abandonar hospitais que já não podem oferecer sequer os cuidados mais básicos (ver também aqui e aqui).

Além disso, os hospitais estão cada vez mais sujeitos a alegações infundadas que lançam dúvidas sobre a sua função humanitária, levando a ataques contra eles e/ou nas suas imediações que prejudicam os serviços de saúde essenciais. Os padrões de tais ataques muitas vezes carecem de procedimentos claros, especialmente no que diz respeito à emissão das devidas advertências. O fortalecimento da proteção dos hospitais requer uma interpretação rigorosa da obrigação de advertência nos casos em que a sua proteção especial é contestada, bem como o desenvolvimento de melhores práticas para aperfeiçoar a comunicação entre as partes em conflito.

Marco legal para a proteção dos hospitais

Como unidades de saúde, os hospitais recebem proteção especial do DIH, uma salvaguarda fundamentada no seu papel vital de prestar assistência aos feridos e doentes. Estas proteções estão consagradas na Primeira e Quarta Convenções de Genebra (CG I e CG IV) e, quando aplicável, nos Protocolos Adicionais I e II (PA I e PA II), bem como no Direito Internacional Humanitário Consuetudinário. Durante conflitos armados, os hospitais devem ser “respeitados e protegidos em todas as circunstâncias“.

A obrigação de “respeitar” os hospitais é um dever negativo, o que significa que eles não podem ser objeto de ataque. A obrigação de “protegê-los”, por sua vez, é um dever positivo, em que as partes devem tomar todas as precauções possíveis para poupar os hospitais dos efeitos das operações militares (ver Comentário de 2016 do CICV sobre a Primeira Convenção de Genebra, parágrafo 1797 e Comentário de 1958 do CICV sobre a Quarta Convenção de Genebra, pág. 147). Por exemplo, se um ataque ocorrer perto de um hospital, as partes devem tomar todas as medidas necessárias para evitar ou ao menos minimizar o seu impacto. Um ataque direto provavelmente constituiria uma violação legal.

As partes também devem garantir que as operações hospitalares não sejam obstruídas nem impedidas, mesmo que o estabelecimento caia nas mãos da parte adversária (ver parágrafo 1799). Isto inclui tomar todas as medidas possíveis para permitir a operação segura de ambulâncias, o reabastecimento de equipamentos médicos e o acesso a eletricidade, água e combustível para o desempenho de funções médicas (ver  parágrafos 1804-1808).

Os hospitais não podem ser usados como escudos humanos contra ataques e devem estar localizados longe de áreas com risco de hostilidades. Quando a realocação não for possível, objetivos militares não devem ser instalados nas proximidades – ou, se isto já houver ocorrido, é necessária a sua remoção (ver Comentário de 1958 do CICV sobre a Quarta Convenção de Genebra, pág. 152). O uso de hospitais como unidades militares, para armazenamento de armas ou outras funções fora do seu propósito humanitário deve ser proibido, sob o risco de perda da sua proteção específica (ver parágrafo 1800).

O Direito estipula que os hospitais podem perder a sua proteção especial se forem usados para cometer atos nocivos ao inimigo que não correspondam à sua função humanitária (ver aqui e aqui). No entanto, admitir combatentes ou civis feridos ou doentes não compromete o status de proteção de um hospital (ver aqui e aqui). Se surgirem condições que impliquem a perda da proteção específica, as partes em conflito têm a obrigação de emitir a “devida advertência”. A emissão de tais advertências difere daquelas encontradas nas obrigações fundamentais de precaução, pois são um requisito geral que não está sujeito à ressalva “a menos que as circunstâncias não o permitam” (ver parágrafo 1848).

A legislação não especifica em que consiste a devida advertência e, na prática, ela pode assumir várias formas, como pedidos diretos, e-mails, telefonemas, folhetos ou anúncios públicos na TV, na internet e em outros meios de comunicação (ver parágrafo 1850 e aqui). No entanto, os chamados ataques de tiros de advertência (roof knocking) ou os projéteis disparados perto de hospitais podem ser considerados inapropriados, já que têm potencial para ferir civis e gerar pânico.

Na ausência de ameaça imediata à vida dos combatentes que avançam, qualquer advertência deve ser acompanhada de um limite de tempo razoável. Isto permite que o hospital responda às alegações – seja fornecendo evidências contrárias para dissipar a suspeita ou cessando quaisquer atos nocivos (ver o Comentário de 2016 do CICV sobre a Primeira Convenção de Genebra, parágrafo 1852 e o Comentário de 1958 do CICV sobre a Quarta Convenção de Genebra, pág. 155).

Se uma advertência for ignorada ou os atos nocivos continuarem, deve ser dado tempo suficiente para garantir a evacuação segura de pessoas feridas e doentes, profissionais de saúde e quaisquer civis que não sejam responsáveis pela suposta conduta e, portanto, não devem sofrer as suas consequências. A decisão de realizar um ataque sem aviso prévio ou sem o tempo necessário à evacuação deve ser uma exceção absoluta, tomada apenas com extrema cautela e consideração total dos riscos para as pessoas feridas, doentes e para a equipe de saúde que estiver dentro do hospital (ver parágrafo 1849).

Se as condições que levaram à perda da proteção específica deixarem de existir, o hospital deve recuperar imediatamente o seu status de proteção total (ver parágrafos 1853, 1856, 1857). As partes em conflito voltam a ser obrigadas a respeitar o seu funcionamento, abstendo-se de buscas arbitrárias, detenções ou outras formas de interferência (ver parágrafos 1801-1804), sem dificultar o acesso a insumos essenciais.

Em outras palavras, o dever de advertência serve como uma salvaguarda adicional para proteger os hospitais dos efeitos das hostilidades e preservar integralmente a sua função de salvar vidas. Ele nunca deve ser usado como pretexto para justificar ataques a hospitais ou forçar a evacuação de profissionais de saúde e pacientes. Mesmo quando um ataque contra um hospital que perdeu o seu status de proteção específico puder ser justificado, as partes atacantes continuam obrigadas a garantir a proteção das pessoas feridas e doentes, da equipe de saúde e do material médico no seu interior.

Qualquer ataque deste tipo deve aderir estritamente aos princípios fundamentais de distinção, proporcionalidade e precaução, garantindo que os danos às instalações hospitalares, à equipe de saúde, aos pacientes e aos civis sejam evitados – ou, ao menos, minimizados o máximo possível (ver aqui).

Desafios práticos do marco legal para a proteção de hospitais

Apesar do marco jurídico vigente, ainda há desafios significativos para garantir a plena proteção dos hospitais na prática. Uma grande lacuna é a ausência de um procedimento padronizado para emitir advertências aos hospitais antes da realização de ataques. Sem diretrizes claras, há o risco de que os avisos sejam mal utilizados – transformando-se em ameaças em vez de medidas protetivas –, minando assim as próprias salvaguardas que deveriam representar.

Uma comunicação que não atenda aos requisitos mínimos descritos na seção anterior não pode ser considerada como uma “devida advertência”. Em vez disso, equivale a pouco mais do que uma alegação ameaçadora, que não apenas põe em risco a segurança do hospital, mas também enfraquece a eficácia geral das proteções legais em conflitos armados.

O Relatório de Desafios 2024 do CICV enfatiza a necessidade de mais pesquisas sobre boas práticas para a emissão de advertências, de modo a garantir que elas sejam acessíveis e incluam orientações claras sobre o momento, a duração e a janela de tempo concedida para a interrupção dos atos considerados nocivos a um adversário (ver págs. 36-37). No entanto, estabelecer um procedimento passo a passo totalmente padronizado continua sendo algo extremamente complexo. Na prática, dependendo das circunstâncias, as partes em conflito podem desconsiderar ou ignorar certas etapas, tornando a aplicação consistente dos protocolos de alerta sobretudo desafiadora. A informação em tempo real é crucial para a promoção de esforços mútuos na proteção de hospitais, em particular em casos de disputa. No entanto, os canais de comunicação entre as partes em conflito permanecem inadequados. É necessária uma maior cooperação entre atores armados e entidades neutras para intercambiar e atualizar informações, em especial sobre o status e a capacidade operacional dos hospitais sob alegação, bem como alternativas viáveis de evacuação.

Para que os avisos sejam eficazes, eles devem chegar aos destinatários apropriados. Embora as autoridades hospitalares tenham que ser informadas, elas podem não estar cientes da atividade militar que ocorre dentro da instalação ou não ter a capacidade de interrompê-la. Portanto, as advertências também devem ser dirigidas a outras partes relevantes, incluindo aquelas que podem ser responsáveis ou estar envolvidas no suposto ato nocivo. Em última análise, a advertência deve ser emitida para aqueles que realmente estão cometendo o “ato nocivo ao inimigo”, de modo a cumprir o seu propósito legal e de proteção (ver parágrafo 1850).

Da mesma forma, as partes em conflito são fortemente encorajadas a estabelecer mutuamente termos claros sobre as advertências e a organização da evacuação nos casos em que o ataque a um hospital se torne inevitável. Isto pode ser alcançado por meio de acordos especiais nos termos do Artigo 6º comum à Primeira, Segunda e Terceira Convenções de Genebra (CG I, II e III) e do Artigo 7º da Quarta Convenção de Genebra (CG IV). Estas disposições concedem às partes a flexibilidade para determinar o conteúdo e o formato de tais acordos, desde que não afetem negativamente a situação das pessoas feridas, doentes ou outras pessoas protegidas.

Em última análise, apesar dos desafios práticos, o fracasso em respeitar e proteger os hospitais muitas vezes decorre de um desrespeito preocupante do DIH. É fundamental lembrar que ataques indevidos e intencionais contra unidades médicas podem levar a uma violação grave do DIH e constituir crimes de guerra (ver Estatuto de Roma, Artigo 8(2)(b)(ix)). Para fortalecer a responsabilização e evitar violações recorrentes, as partes em conflito devem adotar melhores práticas para investigar as causas das alegações e ataques aos hospitais, pois o monitoramento e a verificação das violações continuam sendo extremamente desafiadores (ver parágrafo 2). Entidades neutras também podem desempenhar um papel crucial no esclarecimento desses incidentes e contribuir para o processo investigativo, garantindo uma maior transparência e conformidade com as proteções legais.

Além das obrigações legais, proteger os hospitais é essencial para aliviar o sofrimento causado pela guerra e defender a humanidade em conflitos armados. O ataque a um hospital é um ataque à vida humana e ao direito fundamental à saúde. As partes em conflito são, portanto, instadas não apenas a respeitar a lei, mas também a adotar boas práticas que fortaleçam a proteção dos hospitais, garantindo o acesso ininterrupto a cuidados médicos que salvam a vida de pessoas afetadas pelos conflitos armados e pela violência.

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