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Ação climática em contextos de conflito armado e fragilidade: abordar os desafios da implementação

Ação humanitária / Acesso / Análise / Séries especiais 15 mins read

Ação climática em contextos de conflito armado e fragilidade: abordar os desafios da implementação

Os crescentes riscos e choques climáticos têm um impacto terrível nas comunidades situadas em áreas afetadas por conflitos armados. Nos últimos anos, a vontade política de fortalecer a ação climática nesses contextos tem crescido. É urgente transformar os compromissos em resultados tangíveis para as comunidades, e existem caminhos para isso.

Neste artigo, Catherine-Lune Grayson e Amir Khouzam refletem sobre vias para fortalecer a ação climática em contextos de conflito armado.

Há um ano, antes da COP28, escrevemos sobre os dilemas de fortalecer a resposta aos riscos climáticos em contextos de conflito armado. Apreciamos a publicação da Declaração da COP28 sobre clima, alívio, recuperação e paz, em que um grande número de Estados e organizações – fundos para o clima, bancos multilaterais de desenvolvimento, organizações humanitárias e outros – se comprometeriam a fortalecer a ação climática, com o financiamento adequado, em situações de conflito, fragilidade e necessidades humanitárias graves.

A Declaração demonstrou a crescente vontade política de abordar uma grave lacuna na ação climática em contextos frágeis e de conflito armado. Essa lacuna tem consequências na vida real, pois comunidades e países que já têm menos recursos para enfrentar os riscos e choques por causa da destruição provocada pelo conflito armado estão tendo que lidar com eventos e padrões climáticos mais frequentes, intensos e imprevisíveis que comprometem seus meios de subsistência e modos de vida.

Como sempre, é preciso colocar em prática os compromissos políticos e de alto nível para fazer uma diferença tangível na vida das pessoas. Para que isso aconteça, deve haver um consenso sobre medidas bem práticas que são necessárias para avançar. Ao longo dos anos, em muitas conversas que tivemos com governos, comunidades e instituições financeiras, uma dificuldade comum foi mencionada: para direcionar mais apoio a esses contextos, é necessário contar com mais detalhes em relação às diferenças e semelhanças em todo o espectro de fragilidade e conflito, os obstáculos específicos dessas distintas situações e as abordagens existentes que funcionaram.

É uma observação sensata: embora existam muitos compêndios de práticas recomendadas e estudos de caso, nem sempre fica claro o que queremos dizer exatamente quando afirmamos que, em distintas situações de fragilidade e conflito armado, é preciso ampliar a ação sob medida.

Para responder a essa dúvida, decidimos analisar situações específicas, que vão desde a grande fragilidade institucional até o conflito de alta intensidade, para refletir sobre as limitações que caracterizam cada ambiente e as práticas promissoras para enfrentá-las. Em última análise, concluímos que, em todos os ambientes, é possível tomar medidas para fortalecer a resiliência das populações aos crescentes riscos climáticos.

Explorando a noção de fragilidade e conflito

A noção geral de fragilidade e conflito refere-se a diversas situações que vão desde a fragilidade institucional até conflitos prolongados, territórios contestados e conflitos armados de alta intensidade. Essas situações costumam coexistir dentro do mesmo país: alguns lugares são relativamente pacíficos e estáveis, enquanto outros enfrentam um conflito de baixa intensidade com picos periódicos de violência; algumas áreas podem estar sob o controle do governo, enquanto outras estão sob o controle total ou fluido de um grupo armado. O que pode ser feito em um local caracterizado pela fragilidade institucional é, em última análise, muito diferente do que pode ser feito durante um período de conflito de alta intensidade.

Embora tudo isso seja relativamente claro na teoria, na vida real as linhas que separam as situações podem ser imprecisas. Os conflitos oscilam, os grupos armados obtêm ou perdem o controle e as instituições vacilam tanto em termos de força quanto de confiabilidade. O mundo real é complexo e não se encaixa numa taxonomia de quatro categorias. Isso se reflete nas diferentes abordagens que as distintas organizações adotam para avaliar os contextos de fragilidade e conflito.

Por exemplo, o CICV classifica os conflitos armados apenas com base em fatos e critérios jurídicos definidos no Direito Internacional Humanitário (DIH). Para que uma situação seja considerada um conflito armado internacional de acordo com o DIH, não é necessário nenhum nível específico de intensidade. Isso não se aplica aos conflitos armados não internacionais, pois indicadores de intensidade – como número e intensidade de confrontos individuais, níveis de deslocamento ou número de vítimas, entre outros – são necessários para classificar a situação.

A lista anual de situações de fragilidade e conflitos armados do Banco Mundial identifica situações de conflito com base em um limiar de mortes relacionadas a conflitos em relação à população, e alguns fatores podem levar um país a ser listado como frágil, como níveis de deslocamento, a presença de uma operação de manutenção da paz da ONU ou fraqueza da capacidade institucional e da conjuntura política. O índice da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) não especifica quais países estão em conflito e não considera que a fragilidade e o conflito sejam categorias mutuamente exclusivas, observando que “os contextos afetados por conflitos tendem a ser frágeis, mas a maioria dos contextos frágeis não está em estado de guerra”.

Na prática, isso significa que uma determinada organização pode considerar que um país está em conflito, e outra, não. No entanto, os distintos índices e listas institucionais têm uma sobreposição significativa – embora as listas anuais ou bienais nem sempre consigam captar as rápidas mudanças que ocorrem em contextos instáveis – e dão boas indicações sobre a estabilidade geral, a força da governança e das instituições e os níveis de violência, que são elementos importantes para elaborar respostas adequadas. E, o que é relevante para nossos propósitos, há uma grande sobreposição entre os países presentes em todas essas listas e aqueles considerados mais vulneráveis e menos preparados para se adaptar às mudanças climáticas.

Algumas palavras sobre fragilidade, conflito armado e riscos climáticos

Embora existam grandes diferenças entre os países que enfrentam situações de fragilidade e conflito, em geral eles têm pouca capacidade de lidar com e se adaptar às mudanças do clima, por isso são extremamente vulneráveis aos riscos climáticos.

Como abalam os alicerces das sociedades, os conflitos e a fragilidade também reduzem a capacidade de projetar e implementar planos, leis e políticas para gerenciar riscos atuais e futuros e de coletar e analisar dados para fundamentar suas ações. Essas debilidades podem dissuadir as organizações parceiras de enviar pessoal, limitar a capacidade dos atores locais de garantir a supervisão financeira e diminuir o apetite de investimento de organizações do setor de desenvolvimento e do setor privado. O déficit de desenvolvimento que caracteriza a maioria dos países frágeis e afetados por conflitos contribui ainda mais para restringir os caminhos para a adaptação.

A dinâmica dos conflitos armados e o nível de desenvolvimento em um determinado lugar influem muito no tipo de ação viável. Em geral, quanto maior a insegurança e a instabilidade, maior a relutância em intervir para além dos setores humanitários e de segurança, e mais restrito o leque de atividades potenciais. No entanto, está claro que existem caminhos sob medida para reduzir os riscos, mesmo nos ambientes mais complexos. Tais abordagens são adaptadas ao contexto, se baseiam no risco, levam em conta o conflito e não reforçam nem criam desigualdades. Abrangem as capacidades e atividades de uma ampla gama de atores, dentro da sociedade civil e dos setores público e privado, desde os níveis local até nacional, regional e internacional. Como as situações de conflito e fragilidade tendem a ser dinâmicas e podem exigir uma rápida adaptação a uma mudança nos níveis de instabilidade e violência, é fundamental contar com flexibilidade na programação e no financiamento.

Por último, é indispensável lembrar que ainda há incerteza a respeito dos caminhos climáticos projetados, além de lacunas significativas em nossa compreensão geral da adaptação às mudanças climáticas, do que pode ser eficaz ou levar à má adaptação agora e no futuro. As lacunas de compreensão são particularmente altas em contextos frágeis e afetados por conflitos armados.

Como fazer dar certo na prática

Para responder às preocupações que ouvimos em diálogos com governos e outros atores, nos propusemos a explorar até que ponto os programas que ajudam as comunidades a prever, se adaptar e responder a choques podem ser implementados em todos os tipos de ambientes. Para isso, consideramos quatro tipos de intervenções usadas por profissionais do setor de desenvolvimento, humanitário e climático: apoio ao acesso a serviços básicos, meios de subsistência da população, seguridade social e alerta antecipado/ação rápida. Raramente feitas de modo isolado, essas intervenções são combinadas e encadeadas por governos e atores dos setores de desenvolvimento e humanitário numa sequência de respostas que abordam os riscos sistêmicos e residuais, inclusive os riscos climáticos.

A conclusão geral não é surpreendente: quanto maior a instabilidade e a violência, maiores as dificuldades. Apesar de serem caracterizadas por restrições financeiras e de capacidade, prioridades concorrentes e inconstantes, além de acesso desigual a serviços básicos e infraestrutura governamental, as situações de fragilidade institucional oferecem um alto potencial de ação coordenada e abrangente em escalas espaciais e temporais.

Em situações de conflitos prolongados, a experiência mostra que uma ampla gama de atividades pode ser implementada para fortalecer a resiliência, apesar dos evidentes desafios. Dependendo do tipo de infraestrutura existente, pode ser possível aliviar o estresse hídrico reabilitando sistemas de abastecimento de água ou substituir poços rasos, que ficam cada vez mais secos durante o período de estiagem, por poços que chegam a aquíferos mais profundos sem exceder um rendimento sustentável. As distribuições de assistência financeira de emergência podem ser uma resposta provisória, enquanto são tomadas medidas para criar redes de segurança social ou para garantir que as existentes abarquem as áreas afetadas por conflitos e incluam as comunidades deslocadas. Os períodos de menor intensidade da violência também possibilitam planejar como enfrentar choques futuros, estabelecendo mecanismos de coordenação e comunicação, posicionamento prévio, treinamentos e exercícios.

Por exemplo, em Tillabéri, no sudoeste do Níger, onde a insegurança alimentar é um problema crônico e as populações estão muito expostas a secas, chuvas irregulares e doenças que atacam as plantações, uma agência da ONU está fortalecendo os meios de subsistência, a proteção social e a resiliência dos serviços básicos. Além de transferir recursos ou vouchers que dão acesso a alimentos, a agência oferece um apoio específico durante a entressafra para reabilitar infraestruturas e suprimentos agrícolas, presta apoio a escolas e conduz iniciativas para melhorar o acesso de pequenos agricultores aos mercados.

O escopo de ação é ainda mais reduzido em situações de conflito de alta intensidade, em que o acesso humanitário costuma ser muito menor, infraestruturas e serviços essenciais desmoronam e atividades de desenvolvimento são interrompidas. Na maioria das vezes, a ação limita-se à ajuda de emergência para garantir a sobrevivência das pessoas por meio do fornecimento de água, alimentos, abrigo e atenção primária à saúde. As áreas próximas da linha de frente – que, com frequência, recebem pessoas deslocadas – costumam ser inseguras e instáveis, mas possibilitam realizar uma ação mais profunda.

Nessas circunstâncias, em vez de buscar construir resiliência a longo prazo, as respostas de emergência podem ter como objetivo não impedir uma eventual recuperação ou “bloquear” abordagens que causem problemas de adaptação. À medida que as condições permitam e a intensidade do conflito mude, a resposta pode passar à construção de resiliência, que pode então dar um alívio durante os períodos de alta intensidade – por exemplo, aumentando a probabilidade de que os serviços continuem funcionando, pelo menos em parte.

Em territórios disputados ou completamente sob o controle de um grupo armado não estatal, o escopo de ação varia de modo considerável. Em geral, esses territórios são excluídos de respostas que vão além da prestação de ajuda de emergência. Em alguns casos, talvez a insegurança limite todas as ações, mas, em outros, pode haver acesso para reabilitar infraestruturas fundamentais, apoiar os meios de subsistência da população, transmitir alertas antecipados ou fornecer assistência financeira de emergência ou apoio alimentar. A falta de presença do governo pode dar espaço a autoridades locais e de facto, que podem estar dispostas a fornecer serviços básicos nas áreas que controlam.

Em agosto de 2023, o Crescente Vermelho da Somália, com o apoio operacional e preditivo da Cruz Vermelha, conseguiu se preparar e responder às inundações provocadas pelo El Niño. Em áreas do país controladas tanto pelo governo quanto pelo Al-Shabaab, foi possível prestar assistência (em níveis variáveis) a 100 mil famílias, protegendo o acesso à água potável, distribuindo kits de higiene e abastecendo postos de saúde previamente. Rádios e redes sociais foram usadas para transmitir avisos periódicos sobre o estado da inundação.

Não podemos nos dar ao luxo de cruzar os braços

Como a Declaração mostrou, e como ouvimos em todas as reuniões em que governos, comunidades e outros atores pedem mais detalhes, há uma vontade política de mudar a realidade atual da ação climática em contextos de conflito armado e fragilidade – que, quando existe, é insuficiente e chega tarde demais. Agora, cabe aos atores operacionais e financeiros mostrar resultados.

O custo da inação não vai parar de aumentar. Apesar das dificuldades para implementar a ação climática em contextos de conflito armado e fragilidade, a ação inadequada só aumenta o déficit que existe nesses contextos e, à medida que os riscos climáticos se tornam mais graves, frequentes e imprevisíveis, ela exacerba suas consequências. Essas consequências são graves e provocam sofrimento humano, perdas e danos. Quanto mais esperarmos para agir, maiores serão os custos – humanos e financeiros.

As intervenções que respondem à ação climática fornecem bens e benefícios comuns. Construir capacidade de adaptação – apoiando os meios de subsistência das pessoas e o acesso a serviços, fortalecendo as redes de segurança social e dando alertas antecipados – beneficia comunidades e países inteiros, não apenas as populações que recebem assistência. Pensar na ação climática dessa maneira pode ajudar a reformular os custos e riscos e, portanto, dar mais argumentos para uma ação ampliada em contextos de conflito armado e fragilidade.

Mesmo em contextos muito complexos, existem possibilidades. Para ampliar a ação, é preciso apoiar, adaptar e expandir as iniciativas existentes. Comunidades, autoridades, atores do setor de desenvolvimento e organizações humanitárias podem ajudar os responsáveis por elaborar políticas a identificar pontos de entrada e projetos que, com apoio extra, possam ser adaptados para abordar de modo mais substancial os riscos climáticos.

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