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Informar sobre casos de violência sexual em uma zona de conflito

Ação humanitária / Gênero / Gênero e conflito / Promover o respeito pelo DIH / Violência sexual 7 mins read

Informar sobre casos de violência sexual em uma zona de conflito

One man, war journalist with digital camera at the place of action, in war zone.

A violência sexual é uma prática generalizada e predominante em muitos conflitos armados modernos. Entrevistar quem a sofreu é uma das tarefas mais difíceis para qualquer jornalista.

Nesta publicação que comemora a 30° edição da campanha 16 Days of Action, Drew Ambrose – um dos correspondentes no exterior mais experientes e premiados da Al Jazeera English – conta sua experiência e apresenta sua técnica para informar esses atos de brutalidade comuns em zonas de conflito.

Advertência: esta publicação contém detalhes que podem ser perturbadores para alguns leitores.

No começo da minha carreira, quando eu era um jovem aspirante a jornalista na redação, um editor experiente me deu o seguinte conselho: “Se alguém testemunhou ou sofreu uma tragédia, leve-o para o cume da montanha de trauma e depois traga-o de volta para o pé”.

Dezesseis anos depois, entrevistar sobreviventes de violência sexual que fugiram de uma zona de conflito ainda é uma tarefa incrivelmente difícil para mim pela grande responsabilidade de “fazer tudo certo”. Às vezes, você passa horas reestruturando as perguntas antes da entrevista, ciente de que uma entrevista mal realizada pode reavivar um trauma emocional.

Se você começar dizendo: “Então, me conte a pior coisa que já aconteceu com você”, é muito improvável que você consiga uma testemunha séria e honesta. Para entrevistar um sobrevivente é preciso gerar uma conexão e, na maioria dos casos, a minha abordagem mais segura é fazer perguntas em ordem cronológica. Fazer com que a pessoa conte sua história de forma linear é uma forma simples e metódica de obter todos os fatos e detalhes. Essa abordagem também evita a insensibilidade de fazer com que as pessoas narrem acontecimentos traumáticos várias vezes.

Mas é quase impossível fazer uma entrevista em ordem cronológica se você não consegue determinar quando o horror começou para o sobrevivente de um estupro que fugiu de uma guerra ou de um genocídio.

Entrevistando Anna

Eu me deparei com essa situação há alguns anos, enquanto pesquisava uma das maiores crises de refugiados da história recente.

Ainda me lembro de olhar para o campo de pessoas deslocadas internas do cume de um morro. Tinha uma série aparentemente interminável de choupanas feitas de lona encerada, paus e sacos velhos de ajuda alimentar espalhados por uma área maior do que a de muitas cidades europeias. De certa forma, ouvir o som dos martelos e ver uma massa de seres humanos reconstruindo suas vidas após sofrerem atrocidades indescritíveis me levou a refletir sobre a resiliência dos afetados e valorizá-la.

Com o passar do tempo, contudo, esse optimismo estouraria como uma bolha diante da chegada da primeira onda de histórias escuras dos sobreviventes de violência sexual nos campos.

Uma sobrevivente aceitou ser entrevistada pela nossa equipe. Semanas atrás, ela tinha testemunhado e fugido de uma chacina perpetrada em sua aldeia. Para chegar até ela, tivemos que descer por escarpas e entrar no alarido do campo, onde havia lojas e bazares.

O barulho dos vendedores de rua desapareceu assim que chegamos a uma fileira de barracas afastadas. Abrimos uma das abas e ela estava nos esperando no escuro com a cunhada dela.

No geral, na filmagem de um documentário, o objetivo é filmar três cenas com cada entrevistado, mas esta mulher – vamos chamá-la de Anna – não queria sair. Nem sequer queria se levantar do assento, porque estava muito abalada pelas experiências traumáticas que tinha sofrido.

Naturalmente, respeitamos seus desejos. Montamos a câmera e uma luz na barraca. Quando começamos a entrevista, eu tentei reconstruir a história dela em ordem cronológica, mas não tinha uma forma agradável de começar a contar sua história, não tinha tempos felizes nos quais começar. A comunidade dela sentiu opressão e medo durante anos.

A cada dois minutos, enquanto Anna e sua cunhada contavam o que tinha acontecido, uma das duas se lamentava em voz alta. Essa avalanche de agonia emocional me comoveu profundamente. Cada pergunta nos aproximava do cume, mas eu sentia que estava levando as duas mulheres por um campo minado.

Anna contou devagar: “Eles chegaram às oito da manhã da quarta-feira e começaram a atirar. (…) Os homens foram esfaqueados e massacrados. Eles demoraram até a tarde para matar todos os homens. Depois, levaram embora as mulheres que tinham filhos. Enquanto levavam as mães, jogaram as crianças delas no chão (…) e as mataram”.

Perguntei a Anna o que tinha ocorrido com seu próprio bebê, que viveu apenas 16 meses neste mundo. Ela respondeu: “Quando nos levaram para um campo aberto, no caminho, tiraram de mim o bebê que eu estava carregando e o jogaram no chão, e depois em uma fogueira (…) o bebê chorava e gritava na minha frente. Quando parei, eles bateram em mim e me obrigaram a continuar andando”.

Enquanto recebia a tradução da resposta dela, meus olhos se fixaram nos dela. Minha linguagem corporal era minha única forma de demonstrar-lhe a minha completa e total atenção. O branco dos olhos dela cintilava com lágrimas prestes a cair.

Anna continuou: “Eles me despiram. Todas nós fomos estupradas. Depois disso, quem ainda respirava foi esfaqueada e deixada para morrer”. Ela acenou para a cunhada cabisbaixa. “Minha cunhada foi estuprada e espancada com um bambu”.

Fiquei sem palavras ao ouvir a tradução das respostas de Anna. Meu único abrigo era a cronologia, e tudo que consegui fazer foi perguntar: “Você poderia me contar o que aconteceu depois?”. Senti que era uma proposta mesquinha e patética.

“Não sei o que aconteceu comigo depois”, disse ela. “Minha cabeça estava sangrando. Tinha o queixo quebrado”. Supostamente, ela foi arrastada até a casa dela por soldados depois do ato de violência sexual. “Quando acordei, a casa estava avermelhada pelo fogo, com a porta trancada”. Anna disse que conseguiu fugir só de milagre, por uma fenda aberta na choupana.

Ela descreveu o que aconteceu depois com cuidado: “Quando queimaram a nossa casa, já tínhamos dito a nós mesmos que como Deus nos salvou daquilo, nunca mais voltaríamos a essa terra. Depois de tanta tortura, não consigo nem dizer o nome do lugar. Todos nossos familiares morreram. Como poderíamos voltar? Sofri muito, quase morri. As pessoas diziam que eu não sobreviveria, porque fomos levadas até a fronteira em sacos, sangrando”.

Três anos depois, quando me lembro da história dessa sobrevivente e reflito sobre ela, acho realmente chocante que na cronologia feita pela Anna, sua história de temor e o inferno que experimentou – o ato brutal de violência sexual que sofreu – tenham sido narrados para mim como se fossem uma nota de rodapé. Esse nem sequer era o cume da montanha dela. Acho isso horripilante por si só.

Muitas vítimas/sobreviventes de violência sexual mencionam a importância de contar suas histórias de forma segura, e o CICV adota uma abordagem centrada no/a sobrevivente que garante a segurança, a dignidade, a confidencialidade e o respeito pelos/as sobreviventes. Dar resposta à violência sexual apresenta um desafio, e os trabalhadores humanitários devem informar onde procurar serviços de apoio (Aos sobreviventes de violência sexual: como encontrar ajuda).

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