A insegurança alimentar continua sendo uma questão crítica nos conflitos armados modernos, agravada pelos efeitos combinados do conflito, dos choques econômicos e das mudanças climáticas. Em resposta a esse panorama, o Relatório de Desafios de 2024 do CICV destaca como o cumprimento de uma ampla gama de normas do Direito Internacional Humanitário (DIH) pode ajudar a evitar crises alimentares agudas, além de evidenciar diversos obstáculos contemporâneos para alcançar sua aplicação na prática.
Neste artigo, o assessor jurídico do CICV Matt Pollard destaca as principais proteções legais previstas no DIH, incluindo a proibição do uso da fome como método de guerra. Ele enfatiza a importância de uma gama muito mais ampla de normas relacionadas à garantia do acesso de civis a recursos essenciais como alimentos e água, e explica que evitar interpretações excessivamente restritas dessas regras do DIH é fundamental para reduzir a insegurança alimentar e seus efeitos devastadores de longo prazo durante os conflitos armados.
A insegurança alimentar aguda afetou cerca de 282 milhões de pessoas em todo o mundo em 2023 devido ao impacto combinado de conflitos, climas extremos, choques econômicos e interrupções no comércio. Os conflitos e a insegurança foram a principal causa da fome para 135 milhões de pessoas, e um fator agravante para milhões de outras.
Com muita frequência, os Estados só reagem ao impacto dos conflitos na segurança alimentar depois que a situação já se tornou uma crise alimentar aguda, limitando seu foco à questão do acesso à ajuda humanitária. O respeito a toda a gama de normas do DIH abaixo descritas, desde o início do conflito, pode ajudar a evitar que tais situações evoluam para crises alimentares extremas.
A proibição do uso da fome de civis como método de guerra
O DIH proíbe o uso da fome da população civil como método de guerra. A fome pode ser definida como a privação de alimentos, água ou outros itens necessários à sobrevivência, e não é necessário que ela ocorra de forma tão severa a ponto de causar a morte: basta que cause sofrimento.
Usar a fome como método de guerra significa provocá-la de forma deliberada. Um exemplo é a privação de alimentos e água durante cercos. Outro é a destruição de alimentos e suprimentos de água, assim como dos meios para produzi-los e distribuí-los, com o objetivo de privar o adversário de recursos essenciais. Para chegar à conclusão de que uma parte está utilizando a fome como método de guerra, não é necessário esperar até que pessoas civis estejam realmente morrendo de fome.
A proibição se aplica à fome de civis, e não à fome das forças armadas. No entanto, isso não significa que a proibição se aplique apenas a atos realizados com o propósito específico de fazer pessoas civis passarem fome. Como mínimo, também é proibido o uso indiscriminado da fome como método de guerra, ou seja, quando a privação de alimentos, água ou outros itens necessários à sobrevivência não pode ser ou não é dirigida exclusivamente às forças armadas. Por exemplo, uma parte que realiza um cerco não poderia justificar a fome em massa deliberada de civis alegando que seu propósito específico era apenas fazer os combatentes inimigos, que também estavam na área, passarem fome. Além disso, tanto a parte que realiza o cerco quanto a parte sitiada devem permitir que as pessoas civis saiam e continuar cumprindo as normas do DIH referentes à ajuda humanitária e à condução das hostilidades, inclusive em relação a quaisquer civis que permaneçam.
Nada no significado usual da formulação da proibição indica que ela tenha sido concebida para permitir o uso indiscriminado da fome como método de guerra. Além disso, tal interpretação seria inconsistente com as intenções refletidas na regra corolária sobre “bens indispensáveis” do artigo 54(2) e (3) do Protocolo Adicional I, discutido a seguir. Primeiramente, o artigo 54(2) refere-se explicitamente ao “objetivo específico de privar a população civil ou a Parte adversa de seu valor de subsistência” (ênfase acrescentada).
Em segundo lugar, a exceção descrita no artigo 54(3)(b), quando um bem está sendo usado para apoio direto a uma ação militar, está sujeita à disposição principal de “não efetuar, em caso algum, contra esses bens, ações das quais se espera que deixem tão pouca alimentação ou água à população civil que esta fique reduzida à fome ou seja forçada a se deslocar”.
Entretanto, a referência à fome como método de guerra não abrange toda a fome causada pela guerra. Por exemplo, a fome causada por uma interrupção geral dos sistemas de transporte como resultado incidental do conflito armado não estaria necessariamente incluída na proibição, a menos que uma das partes estivesse deliberadamente buscando provocá-la. Ainda assim, atos que causem a privação de alimentos, mesmo quando não possam ser caracterizados como “método de guerra”, são passíveis de proibição por outras normas do DIH.
Proteção dos bens indispensáveis à sobrevivência da população civil
O DIH concede proteção especial a “bens indispensáveis à sobrevivência da população civil, tais como os gêneros alimentícios e as zonas agrícolas que os produzem, colheitas, gado, instalações e reservas de água potável e obras de irrigação”. Os tipos de bens abrangidos pela norma não se limitam a esses exemplos.
A depender das circunstâncias, moradia, vestuário ou combustível também poderiam ser incluídos nesta categoria, assim como certos tipos de infraestrutura de energia ou de comunicação diretamente relacionados à oferta de bens indispensáveis à sobrevivência da população civil.
É proibido atacar, destruir, retirar ou pôr fora de uso esses bens. Esses termos foram incluídos no texto para cobrir todos os meios possíveis, incluindo o uso de produtos químicos para contaminar reservatórios de água ou desfolhar plantações.
As operações cibernéticas também estão previstas nessa proibição. E a possibilidade de que o dano ou efeito debilitante possa eventualmente ser reparado ou revertido não o exclui do escopo da proibição.
Existem exceções à proibição quando os bens são usados como sustento exclusivamente para os membros das forças armadas, ou no apoio direto a uma ação militar (fornecendo cobertura, por exemplo) – como previsto no artigo 54(3) do Protocolo Adicional I. No entanto, mesmo nessas circunstâncias, não se deve promover, “em caso algum, contra esses bens, ações das quais se espera que deixem tão pouca alimentação ou água à população civil que esta fique reduzida à fome ou seja forçada a se deslocar”.
Alguns Estados insistem que essa proibição se aplica apenas a atos realizados com propósitos específicos. No entanto, mesmo em uma interpretação tão restrita, como mencionado acima, o artigo 54(2) do Protocolo Adicional I inclui explicitamente o propósito de negar o valor de sustento dos bens “à parte adversa”, e não apenas à população civil.
Em todo caso, o estudo do CICV sobre o DIH consuetudinário não formulou a norma relevante para incluir um requisito de propósito, comentando que, em relação aos conflitos armados internacionais, a maioria dos manuais militares “não apresenta esta exigência, proibindo ataques contra bens indispensáveis à sobrevivência da população civil como tal”.
Na visão do CICV, para garantir que a norma seja totalmente respeitada e cumpra o efeito protetor pretendido, é essencial que nenhuma medida, seja qual for seu propósito, seja tomada contra “bens indispensáveis” onde quer que a ação possa deixar “tão pouca alimentação ou água à população civil que esta fique reduzida à fome ou seja forçada a se deslocar”.
Outras normas do DIH sobre segurança alimentar
Outras obrigações do DIH também são pertinentes à segurança alimentar. As partes têm a obrigação, por exemplo, de garantir o fornecimento de itens essenciais à sobrevivência da população civil sob seu controle, incluindo alimentos e água. As partes, assim como outros Estados, têm a obrigação de permitir e facilitar a ajuda humanitária, sujeita a seu controle.
Além disso, as normas do DIH sobre distinção, proporcionalidade e precauções nos ataques oferecem proteção geral a bens civis, incluindo infraestrutura de transporte, comércios e outros bens que contribuem indiretamente para o abastecimento alimentar da população civil, mesmo quando não constituem necessariamente bens indispensáveis à sua sobrevivência.
O DIH também proíbe ou regula o uso de certas armas com impacto adverso amplo e duradouro na segurança alimentar, como minas terrestres e munições cluster, além de prever a proteção do meio ambiente. Obras e instalações que contenham forças perigosas, como diques, barragens e centrais nucleares também recebem proteção especial. As normas sobre bloqueios navais, pilhagem e outros atos relacionados a propriedades públicas e privadas também são relevantes.
As hostilidades conduzidas de forma intensiva e contínua poderiam tornar efetivamente impossível, por períodos prolongados, a oferta adequada de assistência humanitária. As partes devem garantir que a forma como conduzem as hostilidades seja compatível com sua obrigação de assegurar o fornecimento de alimentos, água e outros itens essenciais às populações sob seu controle, e permitir e facilitar a ajuda humanitária.
Em situações de ocupação, por exemplo, a Potência ocupante deve garantir, na medida máxima dos meios à sua disposição, suprimentos alimentares e médicos para a população, incluindo a introdução de alimentos, medicamentos e outros itens necessários se os recursos do território ocupado forem inadequados. Se toda a população de um território ocupado ou parte dela estiver sendo inadequadamente abastecida, a Potência ocupante deve concordar com a atuação de programas de assistência e “facilitá-los por todos os meios à sua disposição”, o que, em algumas circunstâncias, pode envolver ajustes em suas operações militares. Uma obrigação similar está prevista em outras situações além da ocupação.
Prevenir interferências com uma operação militar em andamento ou iminente poderia, em circunstâncias excepcionais, justificar a regulamentação – mas não a proibição – do acesso humanitário; no entanto, quaisquer restrições legais ou práticas à liberdade de movimentação do pessoal humanitário devem ser temporárias e geograficamente restritas, de modo a não retardar indevidamente as operações de socorro ou tornar a sua implementação impossível. “Corredores humanitários” (acordos entre as partes para permitir a passagem segura por um tempo limitado em uma área geográfica específica) ou “pausas humanitárias” (suspensão temporária das hostilidades) por vezes permitem a oferta de uma ajuda humanitária que, de outra forma, as hostilidades teriam tornado impossível. Na visão do CICV, no entanto, tais medidas mitigatórias não cumprem necessariamente as obrigações legais contínuas das partes, e não podem ser usadas para justificar a limitação ou recusa em implementar as normas do DIH sobre o acesso e as atividades humanitárias em outros momentos ou locais.
Desafios à proteção efetiva na prática
Além de interpretações excessivamente restritas do DIH, como mencionado anteriormente, um desafio geral para prevenir a insegurança alimentar é o simples descumprimento do DIH. As seções posteriores deste relatório sobre a implementação do DIH e a repressão das violações são pertinentes e devem ser tratadas com urgência neste contexto. A ratificação da emenda ao Estatuto de Roma que inclui o crime de causar fome à população civil em conflitos armados não internacionais na jurisdição do Tribunal Penal Internacional poderia contribuir ainda mais para aumentar o respeito pelas normas relevantes do DIH.
Além de seu impacto imediato, os conflitos armados causam danos duradouros aos sistemas alimentares – por exemplo, em relação à produção de sementes, irrigação e redes de comércio – prejudicando a segurança alimentar a longo prazo. É necessária uma ação coordenada antes, durante e após os conflitos para abordar os pontos de interrupção e outros fatores causadores da insegurança alimentar em todos os níveis do sistema, a fim de reduzir os riscos e fortalecer a resiliência.
A insegurança alimentar agrava as questões de proteção, levando a estratégias de sobrevivência prejudiciais e aumentando os riscos de exploração e marginalização. O apoio adaptado às necessidades de indivíduos ou grupos mais vulneráveis à insegurança alimentar e à desnutrição devido a barreiras sociais e situacionais, deve, portanto, permanecer como uma prioridade: deve levar em consideração fatores como gênero, idade, deficiência e orientação sexual.
Quando as cadeias de abastecimento globais de alimentos e fertilizantes são interrompidas por conflitos armados, isso também pode impactar populações distantes dos locais onde as hostilidades ocorrem. O respeito pelas normas do DIH poderia ajudar indiretamente a mitigar o impacto do conflito no comércio internacional de alimentos e fertilizantes. No entanto, o DIH foca principalmente nas populações dos países em conflito ou diretamente afetadas de outras formas por ataques e operações militares.
Como mínimo, quando tal impacto externo for provável, as partes em um conflito e outros Estados devem agir com urgência para limitar as consequências para a segurança alimentar além de suas fronteiras. O DIH incentiva as partes a adotarem acordos especiais ou outros meios similares para enfrentar tais desafios práticos.