Na COP28, estados e organizações adotaram uma declaração sobre clima, assistência, recuperação e paz, comprometendo-se a reforçar a ação climática e o financiamento em contextos frágeis e de conflito. Durante os últimos anos, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) realizou análises sobre a redução dos impactos da crise climática e ambiental sobre as pessoas que vivem em áreas de conflito, que foram incluídas em um novo relatório, Weathering the Storm [Resistir à Tempestade].
Neste artigo, que integra uma série sobre mudança climática, conflito e ação humanitária, Catherine-Lune Grayson e Amir Khouzam, coautores do relatório e respectivamente chefe da equipe de política e assessor de políticas na CICV, refletem sobre os dilemas relativos ao fortalecimento da resposta aos crescentes riscos climáticos em áreas de conflito.
É comumente aceito que as comunidades que vivem em zonas de conflito estão entre aquelas mais vulneráveis aos crescentes riscos climáticos devido aos efeitos devastadores dos confrontos nas sociedades. Ao ameaçar a vida das pessoas, prejudicar os serviços essenciais, destruir as instituições, a economia e a coesão comunitária, os conflitos restringem a capacidade das pessoas de lidar com todos os tipos de risco. Apesar de sua maior vulnerabilidade, essas comunidades são rotineiramente excluídas dos esforços de adaptação climática devido à volatilidade dos cenários de conflito.
Desde 2019, realizamos estudos de caso em uma série de países afetados por conflitos, visando documentar como extremos climáticos e suas variações estão remodelando a vida das pessoas, e como as respostas devem ser adaptadas. Os últimos estudos, conduzidos entre outubro de 2022 e julho de 2023 em Gaza, Moçambique e Níger, estão incluídos em Weathering the Storm, que documenta alguns dos nossos próprios esforços para ajudar as pessoas a serem mais resilientes face aos crescentes riscos climáticos. O relatório também enfatiza que é possível fazer melhor e garantir que os esforços globais para fortalecer a ação climática também alcancem as pessoas que lidam com as consequências do conflito e da violência.
Três dilemas que enfrentamos
Enquanto realizávamos esta análise, surgiram repetidamente algumas questões fundamentais sem respostas claras. Devemos pensar também sobre elas, pois trabalhamos coletivamente para fortalecer nossa resposta aos riscos climáticos em cenários frágeis e de conflito.
Em primeiro lugar, como podemos ter certeza de que nossa resposta humanitária não conduz, em última instância, à má adaptação em vez da adaptação? E se não tivermos certeza, qual é o curso de ação correto?
Mesmo nos cenários estáveis, os caminhos para a adaptação climática eficaz são geralmente pouco claros, e as iniciativas de adaptação, por vezes, produzem resultados de inadaptação inadequados. Por exemplo, o quebra-mar pode proteger partes de uma comunidade contra inundações, mas aumenta os riscos de inundação para as pessoas que vivem além dos limites do quebra-mar ou impede que os pescadores tirem o seu sustento. Tais impactos são sentidos de forma desproporcional pelas pessoas já marginalizadas e podem reforçar as desigualdades e as fontes de vulnerabilidade.
Os desafios na identificação de caminhos eficazes para a adaptação são especialmente críticos em áreas afetadas por conflitos, em que os dados para avaliar as tendências no longo prazo são geralmente escassos, e em que as dinâmicas sociais e políticas são fluidas e complexas. Isso levanta questões sobre como garantir que a nossa própria resposta humanitária não conduza à má adaptação das sociedades – ou de segmentos das sociedades. Algumas medidas de mitigação são bem óbvias: as respostas devem ser esclarecidas por um entendimento minucioso do contexto e das realidades históricas e sociopolíticas que levam à marginalização e à vulnerabilidade de determinados grupos em primeiro lugar, já que a vulnerabilidade simplesmente “não cai do céu “. Nossas ações devem ser adaptáveis a situações de segurança instáveis e sensíveis a conflitos para mitigar o risco de fomentar tensões.
Mas isso não aborda um importante desafio: ainda que a ação humanitária possa formar uma base valiosa para a adaptação climática por meio de medidas que ajudam as pessoas a sobreviver no curto prazo – por exemplo, através de adaptações incrementais à sua subsistência e melhorias do acesso aos serviços essenciais, ela não dá suporte à adaptação transformadora para tornar os sistemas agrícolas, alimentares e energéticos resilientes ao clima ou garantir o acesso sustentável à água para o futuro. Sabemos que a adaptação incremental dificilmente é suficiente para que as comunidades se adaptem de modo adequado. Também sabemos que, em alguns casos, a preservação dos arranjos existentes, com pequenos ajustes, pode produzir impactos negativos às pessoas ao longo do tempo.
Mas prever os resultados potenciais de má adaptação do nosso trabalho no longo prazo pode ser difícil, pois o impacto duradouro de uma ação na vida e na subsistência das pessoas, ou na dinâmica do poder e da vulnerabilidade, nem sempre é óbvio. Por exemplo, devemos ajudar as pessoas a ter acesso à água suficiente agora e nas próximas décadas perfurando mais fundo – entendendo que isso é uma questão de sobrevivência – mesmo quando isso pode reduzir o acesso das pessoas à água subterrânea no longo prazo? É óbvio que devemos, mas também precisamos estar conscientes da necessidade de aumentar a sustentabilidade das respostas. Quando devemos considerar que a ajuda às comunidades para adaptar sua subsistência no seu local de residência pode, de fato, impedir que as pessoas abandonem as áreas que estão se tornando inabitáveis? Quais os critérios para considerar um ambiente inabitável? E se não temos certeza, como devemos administrar a incerteza, se considerarmos que a inação não é uma opção aceitável? Talvez a resposta esteja em agir com cautela, evitando intencionalmente decisões que aprisionam as comunidades neste ou naquele curso de ação, preservando a flexibilidade das respostas à medida que observamos as tendências e aprimoramos nosso entendimento delas ao longo do tempo.
Em segundo lugar, como nunca há recursos suficientes para responder a todas as necessidades, devemos sempre priorizar as pessoas mais vulneráveis? Ou outros fatores – como as probabilidades de causar um impacto sustentável em conflitos de alta intensidade – devem ser levados em conta e, sendo assim, como?
Temos pedido, há vários anos, o fortalecimento da ação climática nos cenários de conflito. Por mais que exista um reconhecimento crescente dessa lacuna gritante, permanecem as questões sobre a dimensão dessa possibilidade nos cenários voláteis. Devemos de fato investir em serviços essenciais e infraestrutura que podem ser destruídos durante um conflito? Esta é uma pergunta justa, considerando os desafios inerentes e os riscos ligados à implantação de respostas no longo prazo aos cenários de conflito, e levando em conta que as necessidades globais dentro e além dos cenários de conflito ultrapassam nossos recursos coletivos.
Não defendemos levar todos os esforços na direção das comunidades em conflito permanente. Defendemos o reequilíbrio dos esforços de modo que não sejam completamente negligenciados. Há coisas que podem ser feitas nos cenários de conflito, e outras que estão fora do alcance. Nossa própria ação reflete essa realidade.
Na maioria dos lugares, impulsionados pelos princípios humanitários de humanidade e imparcialidade, redobramos os esforços para garantir que temos acesso aos locais mais inseguros, para que possamos prestar assistência humanitária e proteção às pessoas que mais precisam. Até agora, a maioria de nossas atividades no desenvolvimento de resiliência no longo prazo não ocorre em meio às hostilidades, mas geralmente em locais que estão próximos ao conflito e que estão suficientemente seguros para permitir uma resposta mais intencional e no longo prazo. Por exemplo, no Níger as nossas atividades de reforço da resiliência no longo prazo ocorrem principalmente nas comunidades que receberam pessoas que fugiam do conflito. Esse também é o caso de Moçambique. Apesar de serem ligeiramente mais estáveis e seguros, são lugares considerados, em geral, bastante inseguros para trabalhar pelas organizações de desenvolvimento – todos nós temos uma avaliação dos riscos diferente e um limiar de risco diferente.
É justo pedir que todas as metas de investimento sejam mais vulneráveis nos cenários mais instáveis? Não. As comunidades que são um pouco menos vulneráveis, mas ainda assim vulneráveis, necessitam de apoio para assegurar que não caiam em uma vulnerabilidade ainda maior. Então, como encontramos o equilíbrio certo, uma vez que os meios para responder às necessidades nunca são proporcionais às próprias necessidades? Esta é uma pergunta difícil sem uma resposta clara, mas é certo que falta alcançar o equilíbrio, apesar de nos unirmos todos em torno de compromissos para ajudar as pessoas mais vulneráveis e não deixar ninguém para trás.
Em terceiro lugar, faz algum sentido diferenciar entre ação climática e desenvolvimento em lugares onde graves lacunas de desenvolvimento limitam o potencial para a ação climática?
Na maioria dos lugares em que trabalhamos e onde os déficits de desenvolvimento são surpreendentes, a ação climática abrangente está intrinsicamente ligada ao desenvolvimento inclusivo. É praticamente impossível lutar por uma adaptação eficiente sem reforçar o acesso aos serviços básicos, alcançando níveis mais altos de alfabetização e melhorando o potencial para a diversificação econômica. Delimitar o desenvolvimento e o trabalho climático em tais ambientes parece, então, ser artificial e inútil.
As organizações voltadas para o desenvolvimento estão começando a admitir esta realidade. Em suas reuniões anuais de 2023, o Grupo do Banco Mundial atualizou sua visão e declarações de missão para reconhecer o vínculo entre desenvolvimento e ação climática, buscando o fim da pobreza e uma prosperidade maior em um planeta habitável.
No entanto, as iniciativas de desenvolvimento nem sempre são adequadamente informadas pelas tendências climáticas atuais e de longo prazo (e, em alguns casos, contribuem diretamente para a extração insustentável de recursos, inclusive de combustíveis fósseis), e a arquitetura de financiamento permanece relativamente isolada. A adaptação climática, da mesma forma, pode ter implicações que vão além do desenvolvimento, envolvendo profundas mudanças sociais e políticas no relacionamento entre as pessoas e o seu ambiente.
Corremos o risco de diluir a ação climática – e o foco necessário na redução das emissões e na garantia de nos adaptarmos coletivamente aos impactos de curto e longo prazos da ação climática – se afirmarmos que, em última instância, tudo se resume à necessidade de um investimento bem maior no desenvolvimento resiliente ao clima? Certamente precisamos continuar repetindo que a redução das emissões é crítica para a nossa sobrevivência coletiva, assim como precisamos estar conscientes do fato de que o desenvolvimento e a ação climática são inseparáveis.
De volta para o futuro
Ao longo dos anos, à medida que realizamos o trabalho analítico, também trabalhamos em estreita colaboração com organizações humanitárias, pesquisadores e organizações de desenvolvimento, inclusive bancos de desenvolvimento, para assegurar que a vulnerabilidade específica das pessoas que enfrentam conflitos seja reconhecida e que possamos refletir sobre caminhos para melhorar a resposta a tais ambientes. Temos visto certo progresso, pois não precisamos mais defender que as pessoas em áreas de conflito precisam de apoio para se adaptar a uma mudança climática: de fato, na COP28 uma série de estados e organizações se comprometeram a reforçar a ação climática “em situações de fragilidade, conflito ou necessidades humanitárias graves”.
Este é um passo bem-vindo. O que deve vir a seguir é um salto, transformando vontade e compromissos políticos em ações tangíveis. Ao fazê-lo, devemos continuar a aprender coletivamente e a refletir sobre algumas dessas questões: como evitar a má adaptação? Como alocar recursos limitados à medida que as necessidades aumentam? E como vincular de maneira inteligente o desenvolvimento e a ação climática? Essas são perguntas necessárias para as quais pode haver mais de uma resposta correta. Todos nós deveremos buscá-las.
Veja também:
- Namita Khatri, Who gets what: how to get climate finance working for the people who need it most, 10 de novembro de 2022
- Catherine-Lune Grayson, A plea for COP26: don’t forget people affected by conflict, 27 de outubro de 2021
- Catherine-Lune Grayson, When rain turns to dust: climate change, conflict and humanitarian action, 5 de dezembro de 2019
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