A violência on-line não se restringe à esfera digital – ela também tem matado mulheres e adolescentes em espaços off-line. Infiltra-se em suas vidas cotidianas, comprometendo o seu bem-estar físico e psicológico, ocasionando paranoia, vergonha, isolamento e levando até mesmo à morte por crimes de honra, homicídio e suicídio.
Neste artigo, parte de uma nova série sobre Cibersegurança e proteção de dados na ação humanitária, Megan O’Brien, da Unidade de Prevenção e Resposta à Violência do Comitê Internacional de Resgate, resume suas discussões com especialistas em violência de gênero e revisa a literatura existente para uma melhor compreensão do impacto que a violência on-line e a violência baseada em gênero facilitada pela tecnologia (TFGBV, em inglês) têm sobre as mulheres e meninas em contextos de emergência e conflito.
As estruturas patriarcais não estão reservadas aos espaços físicos; elas moldaram o mundo digital, onde a violência e o abuso on-line atingem mulheres e meninas em todo o mundo e as normas e práticas de masculinidade tóxicas se amplificam. A TFGBV está enraizada na mesma desigualdade estrutural de gênero, nas mesmas normas culturais e sociais, e nos mesmos padrões de masculinidade prejudiciais que causam a violência de gênero. A TFGBV visa envergonhar, intimidar e humilhar mulheres e meninas, e se evidencia na crescente diversificação das formas de violência observadas em contextos humanitários, que incluem – mas não se limitam a –abuso com base em imagens, extorsão e tráfico.
A violência on-line pode estender-se a espaços físicos, do mesmo modo que a violência física pode estender-se à esfera on-line. A TFGBV pode ser definida como “qualquer ato de violência baseado em gênero contra mulheres que seja cometido, assistido ou agravado parcial ou totalmente pela utilização de tecnologias da informação e comunicação (TIC), a exemplo de celulares e smartphones, internet, plataformas de redes sociais e e-mail, contra uma mulher porque ela é mulher, ou que afeta as mulheres de forma desproporcional”.
O acesso à tecnologia e à internet é um direito. A tecnologia e as redes sociais podem ser extremamente úteis – e até mesmo salvar vidas – quando proporcionam o acesso a informações seguras e confiáveis, e é fundamental garantir que mulheres e meninas tenham acesso igualitário e experiências seguras nesses espaços digitais.
Como a violência on-line vivenciada pelas mulheres e adolescentes migra dos espaços digitais para os físicos?
Há lacunas significativas nos dados existentes e subnotificação da TFGBV devido, em parte, à falta de definições padronizadas e metodologias de coleta de dados, ao estigma social e ao acesso a serviços relevantes. Ainda assim, um estudo concluiu que 38% das mulheres experimentaram pessoalmente a TFGBV, e 85% entre as que estão on-line testemunharam a violência digital contra outras mulheres. O testemunho forçado ou acidental da violência on-line, sejam ameaças, imagens ou vídeos, pode impactar o bem-estar emocional do espectador. A TFGBV pode humilhar, intimidar e isolar. Pode, ainda, ser socialmente aceita e normalizada.
A TFGBV é generalizada e pode ser contínua, anônima e perpetrada por uma ou mais pessoas. Faz parte de um continuum “de formas múltiplas, recorrentes e inter-relacionadas de violência baseada em gênero” que ocorre ao longo da vida das mulheres e pode acelerar e amplificar este continuum, aumentando sua exposição a uma crescente variedade de possíveis tipos de violência. Além disso, a TFGBV é parte de um ciclo, deslocando-se para espaços off-line com consequências físicas, psicológicas e econômicas.
O cyberbullying muitas vezes coincide com o bullying presencial, com “as adolescentes vivenciando um risco maior de exposição que os meninos”. Esse bullying pode resultar em sentimentos de tristeza e vergonha, perda de interesse nas atividades diárias, perda de sono, sintomas físicos como dores de estômago e de cabeça e, em casos extremos, levar ao suicídio. Em contextos humanitários, o cyberbullying também pode atingir as comunidades afetadas, alimentando tensões e exacerbando a angústia e o isolamento.
A violência sexual baseada em imagens (VSBI) é comum em contextos humanitários. Os perpetradores, conhecidos e desconhecidos das mulheres e meninas, obtêm, compartilham ou ameaçam compartilhar imagens consideradas “inapropriadas” com a família da mulher ou adolescente. A VSBI pode então ser usada para chantagear as sobreviventes para que permaneçam em um relacionamento, compartilhem outras imagens ou forçá-las a atos sexuais, tanto on-line como off-line. Mulheres e adolescentes também recebem mensagens indesejadas, telefonemas e imagens sexualmente explícitas. Estes atos de violência surgem com a tecnologia, mas inevitavelmente se trasladam para o mundo físico, resultando em vergonha, paranoia, perseguição, estupro e, em alguns casos, crimes de honra. Em contextos humanitários, a VSBI não está relacionada apenas ao assédio ou à coerção. Ela também pode expor as sobreviventes a uma série de outras violações específicas do contexto e do conflito, tais como o deslocamento forçado, confissões falsas, represálias violentas por parte de diferentes atores ou grupos armados e homicídio.
As tecnologias digitais e as redes sociais têm sido utilizadas no tráfico em contextos humanitários para enganar, recrutar, preparar, transportar e manter o controle sobre mulheres e meninas. O tráfico é um vetor de muitos outros tipos de dano, incluindo a prostituição forçada e a escravidão sexual. Em contextos humanitários, muitos usuários de internet – em particular crianças, adolescentes e mulheres jovens – são especialmente vulneráveis aos traficantes nas redes sociais. Isto deve-se, em parte, à divisão digital de gênero, aos diferentes níveis de letramento digital, à falta de exposição a práticas on-line seguras, à desinformação generalizada, e a uma grande necessidade de aceitação e amizade.
Os prestadores de serviços relacionados à violência de gênero também testemunharam mulheres sendo alvo de ataques de phishing que resultaram em extorsão, roubo de identidade e danos econômicos para aquelas que foram manipuladas para pagar por oportunidades de reassentamento, serviços de assistência em dinheiro e kits de dignidade.
A violência off-line também pode migrar para os espaços digitais. As TIC têm sido utilizadas para a perpetração de violência entre parceiros íntimos, permitindo que os abusadores monitorem, persigam e controlem as mulheres com quem têm ou tiveram um relacionamento.
Em que medida a experiência das adolescentes difere das vivências das mulheres adultas?
Esse ciclo de violência on-line e off-line baseada em gênero pode assumir várias formas, mas as mulheres jovens e adolescentes enfrentam um risco maior em comparação com as adultas devido à sua idade, identidade de gênero e maior nível de uso das TIC. Cinquenta e oito por cento das adolescentes e mulheres jovens sofreram alguma forma de assédio on-line, e a maioria relata que sua primeira experiência ocorreu entre os 14 e os 16 anos.
Além disso, o cérebro de uma adolescente não termina de se desenvolver e amadurecer até aproximadamente os 20 anos. Durante esta etapa crucial, as meninas enfrentam maiores riscos, isolamento e oportunidades limitadas que podem ter um impacto negativo em seu desenvolvimento. A violência on-line contra adolescentes em contextos humanitários pode agravar estes efeitos, especialmente quando suas redes de apoio social são interrompidas e os serviços podem estar inacessíveis, o que impede que uma sobrevivente tenha acesso a cuidados essenciais e ocasiona graves impactos negativos na sua saúde mental a longo prazo.
Há, ainda, normas culturais e sociais que criam riscos e barreiras à tecnologia e às redes sociais para adolescentes e mulheres jovens. Em setembro de 2022, os crimes de honra no Sudão já tinham duplicado em comparação com o ano anterior porque as mulheres jovens estavam sendo atacadas por seus familiares do sexo masculino por estarem, aparentemente, falando com homens ao celular. Em 7 de julho de 2023, um homem na Jordânia foi acusado de assassinato por .
Os diferentes riscos enfrentados pelas adolescentes quando têm acesso às TIC e aos espaços digitais requerem estratégias de proteção específicas, como a segurança on-line e o letramento digital, a promoção de um comportamento digital responsável e o estímulo a uma comunicação aberta e segura. Entretanto, é importante equilibrar estas preocupações para que elas não se tornem um obstáculo à independência. Além disso, muitos prestadores de serviços em contextos humanitários – especialmente aqueles que trabalham em espaços menos conectados digitalmente – nem sempre estão equipados para oferecer serviços de gestão em casos de violência de gênero e apoio psicossocial a sobreviventes que vivenciaram a TFGBV, ou para responder de forma adequada às necessidades humanitárias decorrentes destes incidentes. Esta lacuna e a falta de serviços relevantes podem exacerbar os impactos enfrentados pelas sobreviventes.
Qual o impacto da violência on-line em mulheres e meninas?
Os impactos da TFGBV são tão severos, prejudiciais e potencialmente fatais como os da violência off-line, e podem funcionar como um vetor para outros tipos de violência de gênero. Tais impactos podem ser amplificados pelo compartilhamento contínuo e permanência dos conteúdos digitais, pelo anonimato dos perpetradores, pela estigmatização social e pelos riscos específicos do contexto. O ciclo inevitável da violência on-line para a off-line agrava estes impactos, e as mulheres e meninas que o vivenciam apresentam impactos psicológicos graves e de longo prazo; elas podem se sentir esgotadas, fisicamente inseguras e isoladas. Podem experimentar, ainda, baixa autoestima, estresse mental e emocional, paranoia, depressão e ansiedade, o que pode inclusive levar ao suicídio.
A TFGBV também limita o empoderamento de mulheres e meninas, a liberdade de expressão, o desenvolvimento e o pleno gozo dos direitos humanos. Em alguns contextos humanitários, especialmente no caso de pessoas deslocadas em movimento, a única forma de que elas se mantenham seguras, em contato com suas famílias e tenham acesso a informações vitais (sobre como solicitar asilo ou ter acesso a serviços) é através de plataformas digitais. Quando mulheres e meninas são forçadas a ficar em silêncio, desativando ou eliminando suas contas nas redes sociais, desligando seus telefones ou deixando de publicar suas opiniões e pensamentos em um esforço para se protegerem, isto impacta negativamente a sua segurança. Tais impactos aumentam a brecha digital de gênero, os riscos e reduzem a voz das mulheres em espaços essenciais, reforçando as estruturas vigentes de poder que favorecem os homens.
A culpabilização das vítimas e o estigma social que acompanham a TFGBV também podem ter consequências devastadoras. Atitudes patriarcais e misóginas sugerem erroneamente que a violência on-line contra mulheres e meninas deve ser considerada como parte da vida digital e que, ao serem participantes digitais ativas, elas estariam “pedindo isso”. Como resultado deste estigma e vergonha, as sobreviventes podem ser menos propensas a buscar serviços e apoio. Além disso, as reações familiares e sociais à VTFGB, em especial à VSBI e ao assédio sexual, têm levado à violência baseada na honra e ao assassinato de mulheres e meninas.
Quais são as lacunas e oportunidades existentes para responder e prevenir esses ciclos de violência?
Há lacunas significativas no que diz respeito à prevenção e resposta à TFGBV. Faltam, por exemplo:
- acesso justo e equitativo às TIC e à internet para mulheres e meninas;
- ferramentas e recursos de apoio para mulheres, meninas e prestadores de serviços;
- especialistas em violência de gênero equipados com as ferramentas necessárias para abordar adequadamente as necessidades humanitárias decorrentes de incidentes de TFGBV;
- capacidade e acessibilidade dos serviços de gestão em casos de violência de gênero;
- estratégias de resposta focadas nas adolescentes;
- conhecimento e evidências sobre o que funciona na prevenção da TFGBV;
- definições padronizadas e metodologias de dados;
- marcos legais, mecanismos de denúncia e acesso à Justiça.
No entanto, cada uma destas lacunas representa uma oportunidade para mitigar, responder e prevenir a TFGBV. Por exemplo:
- incluir intencionalmente mulheres, meninas e organizações locais lideradas por mulheres e de defesa dos direitos das mulheres nas discussões sobre suas experiências, necessidades e caminhos a seguir;
- priorizar o letramento digital e currículos de segurança on-line para mulheres e meninas, capacitando-as para utilizar com segurança as TIC e a Internet da forma que escolherem;
- desestigmatizar a TFGBV e apoiar o comportamento de buscar ajuda através de ferramentas e recursos;
- desenvolver orientações atualizadas sobre como lidar com a TFGBV utilizando marcos de prevenção e resposta baseados em evidências;
- reforçar a capacidade dos prestadores de serviços de apoiar as sobreviventes de TFGBV;
- desenvolver e integrar estratégias de prevenção focadas nas adolescentes;
- reconhecer a TFGBV como uma violação dos direitos humanos e implementar leis e regulamentos para criminalizar, investigar e processar a violência digital;
- aumentar a conscientização sobre as proteções legais existentes e os caminhos de denúncia para as sobreviventes através das redes sociais e da aplicação da lei.
Como avançamos?
A violência on-line contra mulheres e meninas é violência contra mulheres e meninas. Trata-se de um ciclo que se move entre os mundos digital e físico, e constitui-se como uma violação de direitos humanos que nega às mulheres e meninas uma vida com respeito e livre de violência. Tal violação impacta seu bem-estar físico e emocional a longo prazo e, em alguns casos, resulta em morte.
Compreender o significado e o impacto da TFGBV em contextos humanitários é um passo essencial para apoiar mulheres e meninas em seus processos de cura para que elas atinjam todo o seu potencial como cidadãs digitais. Sem a inclusão eficaz da TFGBV nas estratégias de prevenção, mitigação e resposta à violência de gênero, e sem uma compreensão adequada das consequências humanitárias da TFGBV, o apoio às sobreviventes e à sua capacidade de acessar os cuidados de que necessitam serão insuficientes.
Veja também:
- Roxana Radu, Eugenia Olliaro, Not child’s play: protecting children’s data in humanitarian AI ecosystems, 14 de dezembro de 2023
- Susanna Acland, Barnaby Willitts-King, Mobile phones for participation: building responsible public-private humanitarian partnerships, 7 de dezembro de 2023
- Ed Millet, Deploying OSINT in armed conflict settings: law, ethics, and the need for a new theory of harm, 5 de dezembro de 2023
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